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Ilustração de Nina Lins a partir do desenho da capa de Computer Love, de Ian Uviedo, inspirada na capa do álbum Computer World (1981), da banda alemã Kraftwerk [Foto: ceLesTe]
Postado em 03/06/2024 - 11:24
03 – adormecer

Contam que, em meados dos anos 1960, o então jovem escritor Ricardo Piglia ficou incumbido de receber Borges na estação ferroviária de La Plata para uma conferência que o mestre argentino faria na universidade, organizada pelo Diretório Estudantil. Era a segunda vez que se encontravam e, como de costume, Piglia se atrasou. Quando viu o autor de Ficções sozinho, encostado junto a uma pilastra, olhando literalmente para o nada, se aproximou e foi logo dizendo – “Borges, eu sou o Ricardo Piglia”, ao que Borges respondeu, em um calmo sorriso – “Fico feliz que você esteja tão seguro disso”.

Parece que foi a partir daí, dessa fábula borgiana, que Ricardo Piglia entendeu que não precisava necessariamente ser Ricardo Piglia e se cindiu, a princípio em dois, se valendo de seu próprio nome – Ricardo Emilio Piglia Renzi –, daí temos Emilio Renzi, mas depois em múltiplos, em várias vidas e experiências que seriam ordenadas de forma serial nos três tomos de diários que são, afinal, sua obra-prima.

Faz sentido, não seria a primeira vez que Borges aparece feito Virgílio na mitologia que Piglia criou para si, um vulto circunstancial que instiga à ação literária. Logo nas primeiras páginas de Os Anos de Formação, o primeiro tomo, lemos o relato de como um Emilio de três anos, para imitar seu avô, também Emilio, senta-se na soleira da porta com um livro e, após alguns momentos, é avisado por uma figura – saída da estação de trem de Adrogué – que o livro está de ponta-cabeça: “Acho que deve ter sido o Borges, brincava Renzi naquela tarde no bar da Arenales com a Riobamba. Naquela época ele costumava passar o verão no Hotel Las Delicias, e só mesmo o velho Borges para fazer essa advertência a uma criança de três anos, não é?” Igualmente, o espectro aparece no relato de Tardewski em Respiração Artificial, primeiro romance de Piglia, quando o polonês explica a Renzi que seus volumes completos das Obras de Kafka haviam sido roubados e como mais tarde ele conseguiu recuperar um dos tomos em um sebo: “Enfim, para continuar com Kafka, disse Tardewski, umas semanas depois, num sebo da rua Corrientes, comprei novamente um dos volumes da minha edição das Gesammelte Schriften, de Kafka, que, com certeza, o mesmo sujeito que me roubara se encarregara de vender. Era o volume VI (Tagebücher und Briefe). Que teria acontecido com os outros cinco volumes?, perguntava-se Tardewski. Com certeza Borges os comprou, digo-lhe. É, é quase certo, me diz.”

É bem conhecida a maneira como a obra de Borges é examinada ao longo do romance inaugural e perpassa todo o trabalho de Piglia, me interessa aqui perceber como Borges, além de se refratar em narrativas potenciais, aciona a ideia de dissolução da identidade.

Em matéria de literatura, esse conceito – o de identidade – está intimamente ligado à noção de autoria, tão atravessada pelas discussões contemporâneas, tanto a de autor como apropriador quanto a de obras criadas por meio de cruzamentos de dados organizados por ferramentas de Inteligência Artificial – sem falar na enxurrada diária de memes, declarações e imagens que parecem brotar de um dínamo cuja fonte ninguém conhece. No terceiro tomo, Um Dia na Vida, Piglia continua: “Essas tecnologias remotas – que aspiravam à divulgação, à tradução automática e à escrita generalizada – questionaram a ideia de autoria, da criação individual e da originalidade. ‘A literatura deve ser feita por todos, não por um’, a frase do uruguaio Lautréamont foi o lema literário da época.”

Identidade e autoria implicam na existência de um sujeito. Esse sujeito, no entanto, não é uno, e Borges não apenas compreendia isso, como vivia essa realidade. Privado da visão, era capaz de ordenar o mundo em categorias não lineares e relações não explícitas. Talvez isso explique como escreveu o que escreveu sem ter saído de Buenos Aires por mais de cinquenta anos, satisfeito com a experiência que as livrarias e bibliotecas lhe ofertavam, fato que, anos depois, em uma entrevista para um programa da Universidade Nacional de Córdoba feita em 2012, Piglia associaria à realidade da web e com que facilidade, na era dos computadores, alguém poderia descrever detalhadamente lugares em que nunca esteve; sim, Borges habitava uma teia pessoal de conexões e critérios complexos: o sujeito que o abordou na estação de trem em La Plata dizendo ser Ricardo Piglia poderia ser Ricardo Piglia, assim como, com efeito, poderia ser – e era – muitos outros.

Dos tantos contos que escreveu sobre o tema dos duplos, em O Outro, história estruturada a um só tempo como sonho e relato de um único narrador cindido, Borges narra seu encontro com ele mesmo mais jovem, um encontro desconfortável marcado pela desconfiança. Já perto do final, o velho Borges vaticina que um dia o jovem Borges ficará cego – “Sim. Quando alcançares a minha idade, terás perdido a visão quase por completo. Verás a cor amarela, sombras e luzes. Não te preocupes. A cegueira gradual não é uma coisa trágica. É como um lento entardecer de verão”.

Vale lembrar que o entardecer não existia como elemento poético na Grécia antiga. As metáforas eram feitas todas sobre o amanhecer – a aurora, a alvorada, o despertar. Foi Virgílio, em Roma, diga-se, quem começou a celebrar o ocaso, o crepúsculo da tarde, o fim do dia.

Na última vértebra, dediquei algumas linhas à reflexão sobre a palavra intersticial partindo do fato de que em todos os textos produzidos na oficina Computer Love apareceram, em maior ou menor grau, relações transicionais: sóis se pondo, fronteiras internacionais, pessoas semiadormecidas e mensagens criptografadas em sonhos. Além do disparador citado – Random Google Street View –, que serviu para estabelecer previamente qual seria o cenário de onde cada um dos textos partiria, usei também a ferramenta This Person Does Not Exist. Criada por um engenheiro da Uber utilizando o código aberto de empresas de segurança, essa tecnologia GAN (Generative Adversarial Network) rapidamente se disseminou em numerosos sites que, se baseando em um banco de dados exponencialmente alimentado, fornecem fotografias de pessoas que não existem. Não existem? Passam a existir no momento em que ganham uma identidade, mais ou menos como ocorre com personagens que criamos – na ficção ou nessa outra coisa, a realidade – ou, citando o título do livro de Cadão Volpato, com as pessoas que passam pelos sonhos.

Dessa forma, pela alta velocidade generativa da IA, temos à espreita um mundo superpovoado por esses espectros. Nos resta captar suas mensagens, atentos às suas vozes. “Há outro mundo, mas está dentro deste”, escreveu Paul Éluard, o que me lembra também o que diz uma personagem em Red Doc, de Anne Carson, sobre a leitura de Proust: “Era como possuir mais um subconsciente”. E, ainda que na literatura a musa insone seja mais celebrada que a musa do sono – basta lembrar que o leitor ideal é aquele que sofre de uma insônia ideal, segundo Joyce, mas também podemos pensar no título do livro de Graciliano Ramos ou em como é sintomático que, antes de se tornar um ungeziefer, Gregor Samsa estivesse tendo uma “noite de sonhos intranquilos” –, é fato que a potência, o imaginado e o desconhecido superam em muito os fenômenos da chamada “vigília”, que, por si só, é atravessada por fenômenos inexplicáveis.

Nestes tempos de extrema vigilância, a máxima de Francisco Goya – el sueño de la razón produce monstruos – parece sugerir seu oposto, e o que gera monstros, afinal, é a débil cegueira moral do desenvolvimentismo, a celebração do acordo racional gerando catástrofes climáticas, aberrações intelectuais e violência econômica. Prova disso parece ser o romance mais recente de Benjamin Labatut, MANIAC. Polifônico, o livro narra por meio de várias personagens, reais e fictícias, a vida real, emocional e intelectual de homens como Paul Ehrenfest e John von Neumann, isto é, homens das ciências exatas, que, ao lado de místicos e assassinos, compõem a fauna única do autor chileno.

Em um dos momentos mais memoráveis do livro, uma das entradas em terceira pessoa que permitem um distanciamento poético no torrencial de narrativas apocalípticas em torno daqueles que, na esteira da destruição nuclear, conceberam a ideia de computadores pessoais e inteligências tecnológicas, lemos: “Antes de se calar e se recusar a falar até mesmo com sua família ou amigos, von Neumann foi questionado sobre o que seria necessário para que um computador, ou alguma outra entidade mecânica, começasse a se comportar como um ser humano. Ele levou muito tempo para responder, com uma voz que não passava de um sussurro. Ele disse que ela teria que crescer, não ser construída. Ele disse que ela teria que entender linguagem, ler, escrever, falar. E ele disse que ela teria que brincar, como uma criança.”

Abordarei o romance de Labatut em outras vértebras, por ora, acrescento que para um computador, ou alguma outra entidade mecânica – como, por exemplo um ser humano –, começar a se comportar como um ser humano, ele teria, de vez em quando, que adormecer. Adormecer e sonhar. Sim, sobretudo isso: ele teria que sonhar.