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Ilustração de Nina Lins a partir do desenho da capa de Computer Love, de Ian Uviedo, inspirada na capa do álbum Computer World (1981), da banda alemã Kraftwerk [Foto: ceLesTe]
Postado em 06/05/2024 - 4:48
02 – aterrar

Quando nos aventuramos a usar o site Random Google Street View, cuja proposta, como o nome indica, é encaminhar o usuário para locações aleatórias do mundo, entendemos que as cidades são ilusões, coágulos habitacionais em uma malha composta de sendas, estradas, rodovias, autopistas, BRs e highways como as veias que transportam informação de um lugar a outro, eternos pontos de passagem – linhas do verdadeiro rosto do mundo.

Faço o teste uma vez: “E272, Kuziai, 80263, Lituan” – uma estrada. De novo: “Unnamed Road, Co. Westmeath, Ireland” – uma estrada sem nome. Terceira vez: “E77, Dubai, Forenede Arabiske Emirater” – outra estrada, esta ladeada por enormes areais. Quarta e quinta vez: “Rue de Sedan, 5550 Vresse-sur-Semois, Belgium” e “Calle Badajoz, 8, 03730 Jávea, Alicante”. A página é o lugar onde não se mente: dos cinco lances de dados que joguei sobre o mapa do mundo, todos me levaram a estas paisagens transitórias que, mesmo integradas a um território, parecem nos lembrar de nossa natureza nômade e de que as cidades, com um pouco de esforço, existem por questões sentimentais. Para que possamos ser parte de algo.

Em um trecho de As Cidades Invisíveis, Calvino descreve a cidade de Bauci. Se alcança Bauci após sete dias de marcha através da mata, e quem vai até ela não percebe quando chegou. Isso acontece por causa das finas andas que, elevadas em relação ao solo a grande distância umas das outras, sustentam a cidade lá em cima. Os habitantes não descem nunca. Alguns pensam que é porque odeiam a terra; outros, porque a respeitam demais; e ainda há os que pensam que a razão de os habitantes se comportarem assim é porque “a amam da forma que era antes de existirem e com binóculos e telescópios apontados para baixo não se cansam de examiná-la, folha por folha, pedra por pedra, formiga por formiga, contemplando fascinados a própria ausência”.

Extratra (detalhe), 2022, Gabriela Perigo (Foto: Reprodução)

Durante a pandemia, de fato, tínhamos apenas nossa ausência para contemplar e quantas vezes, naqueles anos duros, não me vi vagando pelas ruas de Varsóvia, Casanare, Viborg ou mesmo São Paulo, sempre pelo site, só para me sentir vivo, integrado, esse sentimento tão perigoso em se tratando de nacionalidade, patente de algumas das maiores atrocidades e aberrações ideológicas.

O Marco Polo de Calvino fala de ódio e respeito, esse último frequentemente associado ao medo. A correspondência fonética “terra/terror” é apenas aparente; “terra” vem do latim e então já continha seus diversos significados (chão, solo, território, nação), sendo sua fonte o radical ters (seco), termo usado em oposição a mare (mar); “terror”, por sua vez, deriva do francês antigo terreur, que no início do século 15 denominava “algo que intimida, um objeto de medo”. Penso sobre isso: um objeto de medo.

Fiquemos, então, com o terceiro grupo de opiniões sobre Bauci. A relação entre “binóculos e telescópios apontados para baixo” e nossos celulares é óbvia demais para ser ignorada. Agora mesmo, no posto de observação em que escuto o rumorejar do Rio Água Preta, com o site aberto no meu smartphone, me levanto e movimento o aparelho de um lado para o outro, transformando os poucos metros que habito em quilômetros e mais quilômetros de estrada aberta.

Extratra (detalhe), 2022, Gabriela Perigo (Foto: Reprodução)

Não me lembro quando ou como conheci o Random Google Street View, nem se, ao conhecê-lo, me ocorreu que parte do fascínio que o site exercia sobre mim era devido ao fato de minha família ser formada por desterrados, isto é, por pessoas que tiveram suas vidas radicalmente alteradas por decisões arbitrárias (no caso, a ditadura de Jorge Videla na Argentina; mas, antes disso, a situação socioeconômica na Guatemala) e foram lançadas ao acaso, feito dados, no tal mapa do mundo – e aqui não posso deixar de lembrar do relato de Piglia sobre como sua vida pessoal e a de sua namorada da época, Julia, foram transformadas na tarde em que o zelador de seu prédio na Rua Sarmiento os avisou que militares haviam passado por ali procurando um casal de jovens revolucionários: “Um factum abstrato, impessoal, atua como a mão da fatalidade e apanha entre os dedos indicador e polegar um casal de jovens, suspende os dois no ar e literalmente os joga na rua” –, o que sei é que esse princípio de incerteza cabia muito bem aos propósitos da oficina Computer Love como um dos disparadores para a criação de textos (sobre o outro falaremos em uma próxima vértebra). Me interessava a ideia de uma sociedade flutuante, sem ponto de chegada ou de partida, composta apenas de memórias fictícias e imagens desapropriadas, e foi por isso que, caminhando por uma feira de publicações independentes e iniciativas gráficas alternativas, tive a atenção magnetizada pela artista carioca Gabriela Perigo, sobretudo por um trabalho seu que, aliás, foi exposto na oficina: o Extratra.

Criado em parceria com a artista visual Giovanna Langone e publicado em 2022, trata-se de um jornal que extrapola seu livro A Saga (Garupa, 2022), que “mastiga o livro e cospe de volta, tritura a minha saga e devolve em imagem”, como diz a artista no prefácio-manifesto da edição. Nesse mesmo texto, ela ainda relembra alguns dos momentos mais sombrios da história recente do país e de que maneira os memes a ajudaram a refletir sobre eles: “Eu confiei minhas tentativas em mastigar memes e lapidar poemas pop. Você lê as matérias do dia e fica com vontade de abrir uma cerveja ao meio-dia. Isso é o brasil me obriga a beber. Você tem problemas com seu namorado enquanto o Parlamento arquiva mais de sessenta pedidos de impeachment, resposta: o brasil q me desculpe mas hoje eu vou sofrer de problemas pessoais. Não que esses memes precisem de alguma legenda. Eles definitivamente não precisam. Mas eu precisei desses memes em dias de desgraça, os dentes trincando de raiva. E aí eu tentei dar algum corpo ao absurdo, partindo das linguagens mais usadas para retratar esse último ano: rearticular uma linguagem repetitiva, recheada de jargões, de rimas bestas, ão com ão. Algo como ir ao simples mais simples para expressar o indizível, o horror, desejando disputar narrativas – como não?”.

Ou seja, enquanto lá fora transcorria um apocalipse “bem mais lento e monótono do que nos filmes”, eu andava perdido pelas ruas paralisadas do Google Street View e Perigo enxergava essas manifestações marcadas pela ausência de autoria como ferramentas de pouso, de retorno a si contra a perda do todo (Piglia fala da paciência, da fortaleza da pedra que desvia o curso do rio). Curioso notar como esses rios voadores, essas raízes aéreas, tão alheias ao solo, nos ajudaram justamente nisso – aterrar.

Apenas mais tarde eu descobriria que Perigo utilizara o Google Street View em sua oficina “exercícios para isostasia”, que articula pensamento geográfico e olhar para o espaço e práticas artísticas e de escrita. Na edição de que me falou, distribuiu cards com prints do Google Maps para que, a partir deles, os alunos criassem algum texto. Eu fizera algo similar no Computer Love: no começo da oficina, pedi para que os participantes anotassem dois números, o primeiro de um a cinquenta e oito, o outro de um a dez, e, no final, deixei que esses números definissem qual país seria o sorteado e quantas vezes seria dado o refresh no site. Quase todas as imagens eram de estradas.

Assim como a praia (isso está em Dante, em Defoe, nos objetos de Farnese de Andrade, viemos do mar), a estrada traz consigo a simbologia forte do início, da potência pura, das possibilidades que podem surgir do vazio, do não lugar, do despertencimento. Penso em filmes de David Lynch e fotografias de Robert Frank. Penso na palavra intersticial, e penso nela porque em todos – repito: todos – os textos produzidos pelos participantes de Computer Love predominava a relação entre o consciente e o inconsciente, conduzindo as narrativas para o lugar do sonho. Abundavam sóis se pondo, fronteiras internacionais, pessoas semiacordadas, uma participante chegou a trazer a famosa frase de Gramsci (apropriada por Jaar, é claro) sobre os monstros que habitam este claro-escuro em que estamos metidos. Aterrar no sonho. Dizem que só pertencemos a um lugar depois que sonhamos com ele.

LUZ DEL FUEGO I (detalhe), 2012, Carmela Gross (Foto: Cortesia Galeria Vermelho)

***

Para terminar, volto a uma tarde da semana passada em que, perambulando pelo bairro, topei com uma exposição de Carmela Gross. Chamava-se Quase Circo e de longe a obra que mais me atraiu foi a intitulada Luz del Fuego, um vídeo composto a partir de fotos de jornal recolhidas entre fevereiro de 2012 e novembro de 2016 e que retratavam conflitos no Egito, Iraque, Tunísia, Líbia, Síria, Turquia, Palestina, Ucrânia, Israel, México, Líbano, Paquistão, Bangladesh; confrontos de rua em Atenas, Roma, Barcelona, Madri, Caracas, Washington, Baltimore, Santiago, Frankfurt – e, em todas as fotos, o fogo, a onipresença do fogo como energia de reivindicação. Também aparecem na sequência São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Belo Horizonte, Brasília e Porto Alegre, as manifestações de 2013, as fotos dos incêndios do Memorial da América Latina, do Museu da Língua Portuguesa e do Liceu de Artes e Ofícios.

Encerro esta segunda vértebra com a imagem que mais me hipnotizou:

Na encruzilhada, o homem está sentado na poltrona destruída. Desatento à nossa presença, vemos seu perfil oculto pela balaclava improvisada com tecido. Algumas pessoas estão reunidas em volta daquilo que, com a postura relaxada, ele contempla. E o que ele contempla é uma fogueira, uma enorme fogueira no centro da rua, ardendo entre os destroços. Sob a vista de alguns edifícios obscurecidos, a fumaça sobe, ascende aos céus.