O Museu de Arte de São Paulo, a avenida Paulista, o Parque Ibirapuera, a Ponte Estaiada, o Banespão, o Edifício Itália, ou até mesmo o encontro da av. Ipiranga com a av. São João. Nenhum desses clichês do típico cartão-postal paulistano aparece nas imagens do livro Perímetros: uma cartografia fotográfica dos limites da cidade de São Paulo, a ser lançado no último trimestre deste ano pela editora Lovely House.
O fotolivro é resultado de cinco anos de investigação de Keiny Andrade sobre uma instância imaginária: a linha que divide São Paulo com seus 22 municípios vizinhos. O projeto de design é assinado pelo estúdio Bloco Gráfico e, para a edição, o autor contou com a colaboração do artista e editor André Penteado.
Esta é a primeira publicação autoral de Andrade, fotógrafo que atua no meio editorial há mais de 20 anos. Criado em São José dos Campos, foi na prática do fotojornalismo, principalmente em jornais populares, que ele formou “uma visão da cidade que não era central”, como ele mesmo explica. “Às vezes no mesmo dia eu estava no extremo leste, em Itaquera e depois atravessava a cidade inteira pelas marginais para chegar ao Jardim Ângela, Zona Sul, já na divisa com Itapecerica da Serra”, diz Andrade à seLecT.
Se, por um lado, o jornalismo foi o contexto para o deslocamento pelos extremos da cidade, por outro, a ludicidade da infância inspirou a abordagem do projeto. O autor se recorda de, quando criança, passar com frequência pelo marco do Trópico de Capricórnio na antiga Rodovia dos Trabalhadores, hoje Ayrton Senna. Dentro do carro, seu pai perguntava “vocês viram?” e, diante da impossibilidade de ver uma convenção cartográfica, “a gente tinha que imaginar”, lembra.
Em seu trabalho autoral, isto é, quando conceitualiza um projeto fotográfico sem precisar negociar com as expectativas de um cliente, Andrade se interessa em investigar o campo do “não-visível” e por ficcionalizar representações. Em suas palavras, “a fotografia tem o poder de trabalhar no campo da imaginação”.
Para a execução do projeto, o fotógrafo mapeou os endereços que coincidiam com a geolocalização do perímetro da cidade, ou os que estavam mais próximos dele, por meio do Google Street View e da plataforma GeoSampa, da Prefeitura de São Paulo. Numa aventura quase quixotesca, foi ao encontro da linha imaginária incontáveis vezes, em geral pelas manhãs, em busca de luzes mais amenas, com uma câmera analógica de médio formato. “Fui construindo uma ideia de que eu podia encontrar essa linha simbolicamente por uma sequência de objetos, por um tracejado do chão, um fio…” explica.
De maneira avessa ao Marco Zero, monumento de pedra que simboliza o centro da cidade e serve de referência inicial para a numeração de vias públicas e rodovias, a primeira imagem de Perímetros é de uma pedreira, montanha escavada transformada em matéria prima para erguer a cidade e seus monumentos.
Perímetros apresenta uma diversidade de cenas, mas sob uma perspectiva estética comum: As imagens têm cores pouco saturadas e refutam contrastes intensos de luz e sombra, se distanciando ao mesmo tempo do experimentalismo formal dos modernistas e de uma estética comercial. O ângulo de visão é constante, efeito de uma câmera sempre posicionada na altura dos olhos, enquadrando céu e terra, do ponto de vista de quem está de passagem.
O conceito original do projeto não incluía fotografar pessoas. Contudo, se a experiência que o trabalho propõe é caminhar pela linha, os encontros também fizeram parte do percurso. Estes encontros foram provocados pela curiosidade, não do fotógrafo, mas de moradores e outros passantes, que, por conta do tripé e do tamanho pouco usual do equipamento, chegaram a confundi-lo com um topógrafo.
Ao explicar a proposta do projeto e o motivo do passeio, surgiram pedidos de retratos que acabaram sendo incorporados na narrativa do livro. São imagens, como as paisagens, em que Andrade não se coloca “nem muito perto, nem distante demais” de seu asssunto, como ele mesmo diz. São fotografias que Charlotte Cotton, curadora inglesa e escritora sobre fotografia, classificaria como deadpan – traduzido para português como “inexpressivas” –, em que há um aparente autocontrole e distanciamento emocional do fotógrafo, em prol de uma qualidade mais descritiva da imagem. Neste estilo, ainda segundo a escritora, a ênfase recai na fotografia como um modo de mapear forças estruturais que regem o mundo.
Em Perímetros, uma das imagens enquadra uma colina de um bairro rural no primeiro plano e, ao fundo, um morro com casas aglomeradas e outro descampado. Como ilhas, se destacam entre um oceano de floresta, da qual também fizeram parte um dia. O campo de interpretação é amplo. Como parte de uma experiência maior, da trajetória que o livro propõe, a ênfase recai menos em cada lugar e sujeito retratado e mais nas relações entre eles, entre os modos de ocupar e viver na cidade e de se relacionar com a natureza.
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Daniela Fonseca Moura integrou o Laboratório de Escrita Editorial da seLecT, na plataforma Zait. É fotógrafa e pesquisadora baiana, mestre em Comunicação pela Faculdade Cásper Líbero. Atua como professora convidada da Pós-Graduação de fotografia da Belas Artes (SP) e Cultura Visual da Unicap (PE) e como curadora e mediadora do Ciclo de Conversas do Festival Imaginária