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Bénédicte Savoy [Foto: Phil Dera]
Postado em 13/03/2023 - 4:50
O retorno do bumerangue
Bénédicte Savoy expõe em novo livro como, durante décadas, os museus e as administrações culturais europeias frustraram a luta da África pela recuperação do seu patrimônio cultural, sufocando o debate público

​Bénédicte Savoy, professora da Universidade Técnica de Berlim e uma das mais reconhecidas estudiosas do tema das obras de arte saqueadas durante a era colonial, está perplexa com o que vem acontecendo no mundo dos museus. Nesta entrevista, realizada por e-mail no fim de janeiro, ela nos conta que a restituição ao Benin, em 9 de novembro de 2021, de estátuas, tronos e outros objetos preciosos confiscados pelo exército francês na cidade real de Abomey em 1892, que estavam em museus franceses, é comparável à queda do Muro de 1989. Com efeito, como escreve na apresentação da edição francesa de seu livro A Luta da África por Sua Arte: História de Uma Derrota Pós-Colonial (2021), em 2018 o ministro da Cultura do Benin afirmou que a restituição da herança africana à África, se um dia ocorresse, seria “como a queda do Muro de Berlim ou a reunificação das duas Coreias”. E isso está acontecendo!

​Savoy usa a metáfora do retorno do bumerangue. Podemos ler nessa imagem tanto uma alusão ao retorno das obras aos seus países de origem como também uma referência ao tema do roubo em si, associado a uma longa história de ocupações, pilhagens e genocídios coloniais. A História Moderna é marcada por esse voo do bumerangue: a violência colonial retornando em cheio para abalar a própria Europa. Aimé Césaire, em seu poderoso ensaio de 1950, Discurso Sobre o Colonialismo, usava essa mesma figura ao falar de um formidable choc en retour (“formidável choque de retorno”) ao se referir à violência colonial sendo aplicada no solo europeu pelas forças nazistas. Também Hannah Arendt se referia à volta do bumerangue ao tratar das relações entre nazismo e violência colonial. Mas Savoy aponta as continuidades também após a Segunda Guerra Mundial: os responsáveis por bloquear tanto a restituição das obras roubadas aos judeus no nazismo, em processos dos anos 1950, como também por abafar as demandas das nações africanas nas décadas seguintes, quando reivindicavam suas obras pilhadas, eram em parte os mesmos burocratas que haviam iniciado as suas carreiras durante o período nazista. Na longue durée percebemos que a Modernidade e sua nervura capitalista tiveram no colonialismo e no nazifascismo as suas mais autênticas concretizações.

​Savoy lança mão também, tanto no seu livro como nesta entrevista, da metáfora psicanalítica do recalcado que retorna à superfície: as forças destrutivas acumuladas pela empresa colonial enquanto máquina de destruição agora são expostas à luz do dia. Os saques de obras eram sintomas de uma sanha destruidora. A restituição tem um sentido de reparação, de construção de um mundo sem as amarras coloniais. Como ela afirma, é hora de escutarmos as outras vozes e epistemologias múltiplas até agora amordaçadas pelo discurso pretensamente universal da razão eurocêntrica. Não há mais espaço para a desautorização das falas dos que até agora eram “outrificados”, calados e infantilizados (tornados “sem fala”, infans). Não se pode mais aceitar o argumento da “presunção de incapacidade” dos povos africanos com relação ao seu próprio patrimônio cultural.

​A autora fala também de novas perspectivas geopolíticas de relacionamento Sul-Sul, para além dos estribos coloniais, se articulando nos países africanos. Quem sabe o Brasil também possa cooperar nesta nova reestruturação do campo do imaginário, das trocas simbólicas, mas também econômicas, para além de todo o colonialismo e para além, sobretudo, do neofascismo que nos estava sufocando e assassinando os povos originários.

Capa de a Luta da África por Sua Arte: História de Uma Derrota Pós-Colonial (2021), de Bénédicte Savoy
Bronzes devolvidos pelo governo francês ao Benin [Foto: Louisa Off]

Márcio Seligmann-Silva: Como a senhora julga a atual onda de restituições de obras realizadas por importantes museus, como o British Museum, eventualmente devolvendo obras à África e os Elgin Marbles para a Grécia? A senhora diria que, depois de mais de 50 anos de luta pela restituição, as antigas potências metropolitanas estão se rendendo ao fato de que essas obras foram mesmo roubadas? Ou elas reconheceram que tais obras possuem para os locais de sua origem um significado espiritual, para além do material?

Bénédicte Savoy: Em novembro de 2021, vários objetos preciosos, confiscados pela França no fim do século 19, foram devolvidos ao Benin. Este é, portanto, o primeiro país da África ao Sul do Saara a obter a restituição de uma ex-potência colonial europeia. Este evento é de primordial importância, alguns o comparam à queda do Muro de Berlim. Ele marca um importante ponto de virada na política de patrimônio global. Após décadas de negação e amnésia, a delicada questão das restituições tornou-se óbvia. Alemanha, Bélgica e Grã-Bretanha comprometeram-se energicamente com a dinâmica das restituições. As razões para esta mudança de paradigma são muitas. Na década de 1970, os museus e as administrações culturais europeias conseguiram não só frustrar a luta da África pela recuperação do seu património cultural, como também sufocar o debate público e apagar a memória coletiva a ele ligada. A questão volta hoje em nossas sociedades com a força exponencial de um bumerangue, como o retorno de um recalcamento colonial. Mas desta vez ela não pode mais ser ignorada. Restituição, descolonização, justiça social e justiça patrimonial andam de mãos dadas. Por outro lado, penso que a questão do sentido espiritual das obras, das epistemologias plurais que as caracterizam nas suas regiões de origem, do vazio deixado pela sua ausência, ainda não é bem compreendida na Europa. Ainda há muito trabalho a fazer, sobretudo de escuta: é preciso calar e escutar o que artistas, intelectuais, acadêmicos, comunidades tradicionais etc. têm a dizer sobre esses testemunhos materiais da história da África.

“Benin é o primeiro país da África ao Sul do Saara a obter restituição de uma ex-potência colonial europeia. Este evento marca um importante ponto de virada na política de patrimônio global”

MS: No seu livro publicado na Alemanha em 2021 e agora publicado entre nós, A Luta da África por Sua Arte: História de Uma Derrota Pós-Colonial (2023, Editora da Unicamp), para respaldar essa luta pela restituição, a senhora realiza uma espécie de história detalhada de suas etapas, partindo do início dos anos 1960. Lendo seu livro é surpreendente, para o não iniciado no tema, como já nos anos 1960, e mesmo nos anos 1950, lembrando do Primeiro Congresso Internacional dos Artistas e Escritores Negros, em Paris de 1956, quase todos os argumentos pela devolução e as respostas metropolitanas (repetidas até hoje) contra elas já se encontravam ali. Podemos falar de um processo de elaboração quase psicanalítico de um trauma colonial, no qual esses bens roubados seriam sintomas de uma violência que persiste ainda hoje? Como a senhora compreende essa continuidade?

BS: Com efeito, há 40 anos, a questão da restituição à África do seu património cultural transferido para a Europa durante a época colonial estava na ordem do dia. As reclamações foram feitas. As conversas fracassaram. Elas foram então esquecidas, ou melhor, ativamente reprimidas por certos atores da vida cultural, museus na liderança. A existência desse primeiro debate sobre as restituições e a amnésia que o envolve é, sem dúvida, uma das descobertas mais surpreendentes dos últimos meses, não só para os “não iniciados”, como o senhor formula, mas também para especialistas no assunto, como eu. Encontrar esses documentos nos arquivos de Paris, Berlim, Londres etc. foi um choque. Nesse sentido, sim, há uma dimensão psicanalítica em toda essa questão, de psicanálise social e coletiva. A partir de agora, o discurso está livre e a violência de certas posições atuais é certamente fruto de 40 anos de repressão. Mas, desta vez, ele não pode mais ser ignorado. Repito, restituição, descolonização, justiça social e justiça patrimonial andam de mãos dadas.

MS: Sua maravilhosa apresentação do filme You Hide Me (1971), do diretor nascido em Gana Nii Kwate Owoo, assim como a referência ao fortíssimo filme de Chris Marker, Alain Resnais e Ghislain Cloquet, Les Statues Meurent Aussi (1963), revelam a existência de uma consciência bastante clara da violência que sustentava a estrutura dos museus metropolitanos. Por que os argumentos dos políticos, além desses empacotados em excelentes obras cinematográficas, não conseguiam romper com o bloco de concreto do negacionismo neocolonial, com sua negativa em abdicar das obras? Estaria por trás dessa resistência, mesmo entre alguns etnólogos, uma recusa em aceitar “o africano” como parceiro de um diálogo?

BS: Sim, isso está claro. Fica-se paralisado ao encontrar, em certos arquivos de museus da década de 1970, posições explicitamente racistas assumidas por diretores e curadores, como o diretor do museu de Stuttgart, que ousou escrever ao seu ministério superior, em carta oficial de 1976, que no momento da independência, os círculos da intelectualidade africana desenvolveram “um sentido por vezes exagerado da sua própria dignidade, dos seus feitos, das suas tradições e da sua pertença coletiva”, que, segundo ele, “provavelmente não há quase ninguém, na África, que tenha algum interesse cultural por estas coleções, em particular nas cidades”, pelo que é necessário enviar para estes países “comissões mistas”, compostas de peritos europeus e norte-americanos, para estabelecer a lista dos bens culturais que ficaram nos países, “porque só assim se pode criar uma base fiável e bem informada”. Ele afirma ainda que tais inventários permitiriam aos “povos do Terceiro Mundo” ter uma visão mais realista do que realmente valem. Durante muito tempo, até recentemente, a presunção de incapacidade desempenhou um papel central no discurso antirrestituição, ou seja, a ideia de que os africanos não são apenas incapazes de conservar devidamente o seu patrimônio, mas – pior – de que nem sequer são conscientes do que possuem e do seu valor. Nesse sentido, o extraordinário filme de Nii Kwate Owoo, então um jovem estudante em Londres, rodado em 1970 nas caves do Museu Britânico, manteve toda a sua relevância. Mesmo que nos últimos meses, graças ao debate sobre a restituição, tenhamos ouvido menos publicamente sobre essa suposta incapacidade.

Bronzes do Benim [Foto: Jens Schlueter]

MS: Na sua história da resistência para lá de complicada dos diretores da Stiftung Preußischer Kulturbesitz (Fundação do Patrimônio Cultural da Prússia), fundada em 1957, então responsável pelas políticas culturais da Alemanha Ocidental, fica clara a relação entre personagens mais avessos à restituição e seus passados nazistas. Essa confluência entre nazismo e continuidade da violência colonial pode ser vista em relação à intuição da Hanna Arendt em As Origens do Totalitarismo, que via na experiência colonial alemã na África uma escola para a criação de futuros SS?

BS: Certamente ainda há, na Alemanha, nos atuais debates sobre os museus, o grande tema pouco discutido das continuidades políticas entre o regime nazista e as instituições museológicas do pós-Guerra, assim como há uma virtual invisibilidade do papel desempenhado pela RDA (Alemanha Oriental) e, mais genericamente, pelo bloco oriental, rico em acervos africanos, no debate sobre a restituição durante os anos da Guerra Fria. Na Alemanha Ocidental, após a Segunda Guerra e a Shoah, as mesmas instituições, os mesmos diretores de museus, as mesmas administrações culturais, os mesmos juristas que começaram suas carreiras no aparato do Estado nazista e acabaram nos museus ou nos ministérios da RFA, decidem o destino das obras de arte saqueadas de famílias judias desde 1935 e das coleções acumuladas, às vezes com extrema violência, no contexto colonial alemão. Isso não significa que devemos confundir tudo e comparar a espoliação de famílias judias com a pilhagem colonial realizada sistematicamente por volta de 1900 pelo exército alemão na África, após violentos eventos militares. Cada contexto histórico tem suas especificidades, que devem ser conhecidas e respeitadas. Mas o fato é que os próprios objetos saqueados acabam nas mesmas instituições públicas, e que os pedidos de restituição feitos pelos países africanos desde a década de 1960 são contornados pelo mesmo pessoal que na década de 1950 se esquivou da questão das restituições às famílias judias que haviam sido espoliadas. Ainda precisamos trabalhar essas questões, e fazê-lo com muita sensibilidade, especialmente no contexto alemão, onde surgiu nos últimos meses uma oposição doentia envolvendo estudos pós-coloniais e suspeitas de antissemitismo (debates em torno de Achille Mbembe em 2020 e da Documenta em 2022).

MS: No seu livro também fica clara a relação entre políticas neocoloniais que recusam a restituição de obras e racismo, eurocentrismo, machismo e misoginia. Trata-se de uma cultura neocolonial marcada por continuidades gritantes. E na sua conclusão lemos: “É crucial inscrevermos o atual debate da restituição na longue durée dos processos históricos, a fim de reconhecermos as conjunturas políticas, pessoais, administrativas e ideológicas que moldam essa discussão há meio século. Só assim será possível romper com os modelos institucionais há décadas praticados na Europa no sentido de uma nova ética das relações com a África. Continuar jogando para ganhar tempo, como nos anos 1970, e ostentar o patrimônio cultural da humanidade a título de se obter afirmação nacional já deixaram de ser uma opção para o futuro”. A senhora acredita que esses novos sinais que vêm sendo dados no sentido da restituição indicam que essa “nova ética das relações com a África” está despontando? Vê uma mudança tectônica profunda ocorrendo no cenário atual dos museus?

BS: Sim, há uma mudança profunda. Certamente, não está ligada apenas à questão da restituição, que nos últimos meses se tornou tanto um elemento quanto um “observatório” ou um sismógrafo dessa mudança. Por toda parte, sentimos uma afirmação desinibida dos países e das sociedades civis dos países africanos, que para alguns viraram definitivamente a página de uma antiga vassalagem às antigas potências coloniais e com muita confiança estabelecem novas alianças, multiplicando parcerias fora da Europa e não se deixando mais prender silenciosamente pelos interesses neocoloniais da Françafrique. Na África Ocidental e em Camarões, por exemplo, o fortíssimo sentimento antifrancês não desapareceu, apesar dessas restituições. Mas são, na minha opinião, um gesto sincero e verdadeiro. Para a nova ética relacional que Felwine Sarr e eu reivindicamos no relatório enviado a Emmanuel Macron, em 2018, obviamente será necessário um grande número de outros gestos igualmente verdadeiros e sinceros. Mas tenho certeza: zarpamos.

"Restituição, descolonização, justiça social e justiça patrimonial andam de mãos dadas”