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Regina Boni (Foto: Romulo Fialdini)
Postado em 28/01/2021 - 6:49
Regina Boni: “Um novo mundo se apresenta”
Diretora da veterana Galeria São Paulo inaugura modelo flutuante que busca romper com padrões do mercado e criar comércio inclusivo

Que o mundo mudou, não há dúvida. Para a marchande Regina Boni, 78, a pandemia da Covid-19 está fazendo com que as pessoas mudem sua relação com a vida e evidencia “todas as falhas do sistema da arte”. Quarenta anos desde a abertura da Galeria São Paulo, em 1981, ela instaura um reinicio, inaugurando a São Paulo Flutuante em 2/2, com a exposição O Templo do Cachorro Azul, de Manu Maltez. A ocupação de um galpão na Barra Funda, novo polo de iniciativas culturais na cidade; a busca de um modelo de comércio inclusivo, baseado em valores “mais realistas”; e a sociedade com o artista Manu Maltez criam as bases de sua proposta para esse mundo em transformação. Em entrevista, Boni fala sobre a decomposição dos sistemas diante das plataformas digitais, o futuro incerto das feiras e os meios para voar mais leve: “Nossa equipe é formada por mim, meu sócio, uma assistente, um cão e um pássaro, além de amigos e colaboradores independentes”.

Regina Boni e Manu Maltez (Foto: Romulo Fialdini)

seLecT: A pandemia contribuiu para colocar o modelo das galerias de arte em questão, entre tantos outros modelos desafiados. O que significa “inovar” dentro desse contexto em transformação?

Regina Boni: Acredito que a pandemia tem feito com que as pessoas mudem sua relação com a vida incluindo nisso a própria arte, estabelecendo uma nova relação, independentemente do obstáculo que as galerias de arte representam. Inovar significa a compreensão deste fato tão importante e a oferta de produtos bons e com preços razoáveis que possam abraçar este novo mercado que surge promissor.

Em que medida as plataformas digitais alteram o estado de coisas no mercado de arte?

RB: As plataformas digitais, de certa forma, por hora, desmantelam aquele velho circo armado para as vendas nas galerias. Isso inclui o envolvimento de arquitetos, curadores profissionais, “tendências importadas” e a própria figura poderosa do marchand.

Em que medida as feiras de arte ainda são uma plataforma decisiva no sistema?

RB: Ninguém pode saber o que acontecerá com as feiras de arte, porque elas são parte fundamental e especial do próprio sistema. Faz parte do que hoje estamos vendo desmoronar – junto com um mundo decadente, mas ainda poderoso.

“Hoje, inclusive com a pandemia e com todos as falhas do sistema, as coisas estão se decompondo e estamos lidando com um novo mundo que se apresenta, um novo tipo de relação entre a arte, a vida, está nos pegando de surpresa”

Você sempre se mostrou crítica aos efeitos do mercado sobre o sistema de arte. Em que medida o mercado foi determinante em restringir o público de arte aqueles que têm poder aquisitivo para colecionar?

RB: Existe o sistema e a produção cultural. Para promover a produção cultural é necessária a utilização do sistema. Aí começa a questão. Um artista plástico não precisa viver à míngua para poder desenvolver seu trabalho. Aí entra o sistema capitalista. A arte necessita da riqueza que advém desse sistema. Assim foi até pouco tempo atrás. Hoje, inclusive com a pandemia e com todas as falhas do sistema, as coisas estão se decompondo e estamos lidando com um novo mundo que se apresenta, um novo tipo de relação entre a arte, a vida, está nos pegando de surpresa, temos que aproveitar essa oportunidade, que pode nos levar a um mundo mais humano mas que, por outro lado, se não soubermos nos posicionar, pode também caminhar para cenários cada vez mais distópicos.

Se o intuito da São Paulo Flutuante é facilitar o acesso à arte para mais pessoas, por que manter o formato de galeria ligada ao mercado? Qual seria o modelo de uma galeria “inclusiva”?

RB: O que seria um formato de galeria ligada ao mercado? Sim, temos um espaço, artistas, obras, compramos e vendemos, até porque não estamos em um mundo socialista. Por enquanto é o que temos. Mas não seguimos os padrões do mercado de arte. Acreditamos no comércio inclusivo, e nos propomos a trabalhar com valores que sejam mais realistas. No nosso site, por exemplo, trabalhamos com obras que vão de R$ 500 a R$ 20 mil. E nas exposições do espaço físico procuraremos sempre trabalhar com valores abrangentes. Me arrepio quando vejo uma obra brasileira contemporânea ofertada por R$ 500 mil dentro de uma galeria.

Quais seriam as “linguagens não-domesticadas” que a galeria pretende abraçar?

RB: Linguagens não domesticadas são criadas por artistas, músicos, poetas, pintores, bailarinos, feiticeiros, o que for. O que quero dizer é que não importa o que, mas como. Buscamos arte viva, independentemente de formatos tradicionais ou não. Não há regras.

“Não seguimos os padrões do mercado de arte. Acreditamos no comércio inclusivo”

A nova galeria será instalada em um galpão de 300 mts quadrados reformado. Mas “ser flutuante” não implicaria justamente em “voar mais leve”, sem gastos com infra-estrutura e equipes fixas?

RB: A galeria está em um galpão na Barra Funda. Não mudamos praticamente nada de sua estrutura. Nossa equipe é formada por mim, meu sócio, uma assistente, um cão e um pássaro, além de amigos e colaboradores independentes. Estamos alugando. Quando for o caso de nos mudarmos, sairemos atrás de um outro espaço que nos atraia.

O que significa ocupar uma área da cidade de SP, a Barra Funda, que tem recebido várias propostas novas e independentes? Como a Flutuante se coloca nesse novo cenário institucional? Tem parcerias em vista?

RB: A Barra Funda tem uma importância histórica para a cidade. É um bairro ainda vivo, com suas tradições e moradores antigos. Ao longo dos últimos anos, muitos artistas atraídos também por isso e por seus espaços, principalmente os galpões, migraram para lá. A gentrificação feroz ainda não chegou. É uma boa oportunidade para estabelecer parcerias e criar projetos. Estamos ainda chegando, pisando devagarinho, como diz a música, conhecendo as pessoas e os lugares. Já temos exposições agendadas para esse ano com artistas que consideramos parceiros. Mas já estamos vislumbrando coisas em conjunto, inclusive com bares/restaurantes, como taberna Laskarina Bouboulina, de amigas muito próximas.