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Retrato de Gabriel Pérez-Barreiro, curador da 33ª Bienal de São Paulo (Foto: Pedro Ivo Trasferetti, Fundação Bienal de São Paulo)
Postado em 16/10/2018 - 5:09
Sem tema e com afeto
“A diversidade me interessa”, diz o curador da 33ª Bienal de SP, que convidou sete artistas para curar exposições coletivas
Márion Strecker

O curador Gabriel Pérez-Barreiro detesta exposições com temas, mas, inspirado em Goethe (autor do romance Afinidades Eletivas, de 1809) e no crítico Mario Pedrosa (autor da tese Da Natureza Afetiva da Forma na Obra de Arte, de 1949), criou o título mash-up Afinidades Afetivas. Com orçamento de R$ 26 milhões, a exposição ficará em cartaz de 7/9 a 9/12/18. Pérez-Barreiro é espanhol da Galícia e vive em Nova York, onde dirige a coleção de arte latino-americana da venezuelana Patricia Phelps de Cisneros. Nesta entrevista, ele explica sua visão de curadoria.

seLecT: O que você diria que os 12 artistas escolhidos pessoalmente por você têm em comum, se é que eles têm coisas em comum?
Gabriel Pérez-Barreiro: A pergunta mais interessante é: por que eles precisam ter algo em comum? No ano passado, quando falamos, eu estava enxergando um modelo de sete exposições diferentes, curadas por artistas. Refletindo e conversando com algumas pessoas de confiança, elas disseram: “Mas, Gabriel, você não pode sumir do processo, você não pode delegar a Bienal inteira para esse modelo”. Até que eu gostaria de ter feito, mas entendi o reclamo.

Foram reclamos internos ou externos?
Internos e próximos, bem próximos.

Do seu chefe?
Não. Foram amigos, pessoas de muita confiança. Não foi uma questão institucional. Foi pessoal, afetiva. Então entendi e pensei: o que me incomodava no modelo que a gente estava tentando questionar é essa lógica de que a Bienal tem de ser uma megaexposição coletiva. Então, o jeito era quebrar em sete exposições diferentes. Já é um gesto. Mas o outro é: sempre gostei muito de exposição individual. Todos os estudos curatoriais focam como se o único jeito de fazer uma exposição é fazer uma exposição temática coletiva de arte contemporânea. Acho que, dentro de uma estrutura como a Bienal, é interessante ter momentos de foco individual, para contrastar com a lógica do coletivo. Quer dizer, em cada uma dessas exposições coletivas você olha e presta atenção na relação entre as coisas. Acho que isso é um exercício, mas também é importante ter momentos em que você foca na produção de um artista. Então, falei: vou direcionar minha curadoria nesse sentido. Não vou fazer eu mesmo uma oitava exposição coletiva, então vou fazer uma coisa dispersa. Escolhi projetos individuais que vão ficar espalhados pelo prédio, entre as exposições coletivas. Feito isso, aí entrou esse assunto dos homenageados, dos falecidos. Isso é uma reflexão sobre o núcleo histórico, que é uma tradição muito importante para a Bienal. Não acho que era o caso de trazer aqui os grandes nomes da história, trazer o Picasso de novo, isso nem cabe agora. Seria um exercício interessante pensar a recente história da contemporaneidade e trazer alguns nomes ameaçados de ser esquecidos. Feliciano Centurión (Paraguai, 1962-1996) e Anibal López (Guatemala, 1964-2014) são dois artistas que morreram jovens, sem necessariamente uma estrutura forte institucional para acompanhá-los, e existe um grande perigo de esse trabalho se perder. Já aconteceu com muitos artistas. É uma tragédia quando acontece.

Minha impressão é de que, para o grande público, a Bienal será de novo uma exposição gigante com muitos artistas num prédio grande. Em relação ao título, que nas bienais passadas vinha sendo algo cerebral ou filosófico, você recupera esses termos das afinidades eletivas ou afetivas. Seria o afeto uma tentativa de burlar a racionalização? Você está colocando que suas escolhas são afetivas, de pessoas ou de obras de seu afeto pessoal?
É uma boa colocação e é uma preocupação imensa. Aí entram várias questões. Uma delas é que a seleção é menor. Mais ou menos equivalente à última edição, que já era muito menor que as anteriores. Entre 80 e 90 artistas, um número historicamente muito baixo de participação. Houve edições com 300. A gente não quis sobrecarregar esse espaço. A minha intenção, que acho que vai se dar, era ter uma metade do espaço vazio e a outra metade ocupada.

O que você vai fazer com a metade vazia? Um lounge?
Significa que entre uma exposição e outra existe um espaço aberto. Lounge ou vazio mesmo. Para mim, isso é extremamente importante. A experiência de sair de uma exposição, o que acontece nesse tempo até você entrar na próxima, é um tempo fundamental, quando você começa a processar e se preparar para o outro. Se você gruda um do lado do outro, você não tem respiro. E esse respiro eu acho fundamental. Espaço para sentar, café, essas áreas acho que fazem parte da visita e a gente geralmente esquece. Nas sete exposições, cada artista-curador está trabalhando uma metodologia completamente diferente.

Quão perto deles você trabalha?
Eu dou liberdade absoluta. Tem exposição completamente aberta, tem exposição fechada, tem exposição histórica, tem exposição contemporânea.

Tem exposição temática?
Tem, mas nenhuma é temática no sentido que a gente está tentando fugir, do tipo “eu vou fazer uma exposição sobre o cheeseburger e vou trazer tudo o que tem a ver com cheeseburger”. Tem, sim, operações, tem sensibilidades.

Nenhuma Bienal, que eu me lembre, teve uma temática tão de escola de samba patrocinada quanto “cheeseburger”.
Estou ridicularizando. Minha expectativa é de que justamente a experiência de visita seja diferente, no sentido de que você não está vendo uma exposição só.

A impressão que temos é de que, depois da curadoria de Charles Esche (2014), houve um movimento de afastar a Bienal de uma arte mais política. No entanto, muitos artistas trabalham de forma política e isso também está de algum modo expresso na lista final de participantes da 33ª.
Acho que a política, na arte, não é a representação dos assuntos pontuais do momento. A política da arte é a política de mudar a sensibilidade das pessoas.

Centurión aborda um tema ultracontemporâneo, que é
o universo queer.
Mas eu não escolhi por ser queer. Escolhi porque acho que a produção é importantíssima e fundamental para entender um monte de coisas.

A produção dele é sobre esse tema.
Eu não gosto de “sobre”. Ele tem uma produção queer, o artista trabalha isso. Mas eu não faria uma coisa temática: vamos só trazer artista queer. Não é essa a questão. A questão é trazer trabalhos que operam de um jeito inteligente e sensível. Pode ser queer, pode ser formalismo, pode ser abstração, pode ser meio ambiente. Eu não faço uma hierarquia entre temas. Para mim é tudo político. Toda sensibilidade é política.

Você é contra temáticas de uma maneira geral?
Acho que arte não é sobre uma coisa. O que é importante na arte é a experiência que a pessoa tem. Depois você começa a construir sobre essa experiência. Você tematiza ou não tematiza. O que me oponho é que o discurso seja anterior à obra. Tem muita obra que é tão discursiva que era melhor levar o discurso para o texto. Era melhor ler um livro, para entender uma questão sociológica xis. Claro que as obras trabalham assuntos, mas não deviam ser substituíveis por um texto, por uma explicação.

Você acha que as obras expostas em Bienais de anos anteriores se limitaram ao tema proposto?
Acho que tem de tudo. Tem casos que sim e casos que não. Também acho que não é o meu lugar ficar criticando o trabalho dos outros. É um trabalho complexo. Sabe onde percebi isso? Na formação de curadoria. Quando você vê o currículo de uma escola de estudos curatoriais, que é uma coisa que não existia 20 anos atrás, o que o aluno estuda? Ele estuda outros curadores. Eu fiquei apavorado quando vi o currículo de uma famosa escola de estudos curatoriais que não fazia uma visita sequer a um ateliê. Quer dizer, era um exercício de curador sobre curador.

Mas você não é contra o estudo da história curatorial, é?
Não, acho que é superimportante, mas, se vai trabalhar nesse campo, você tem de se interessar pela arte, pelos artistas, tem de se comprometer com o mundo artístico. Não dá para achar que é um exercício sem relação e sem impacto no campo que você trabalha. História é uma coisa e fazer curadoria é outra.

Pela lista de artistas comissionados por você, noto que está sendo dado um grande foco a latino-americanos.
Quando comecei, fiz uma pesquisa e a Bienal de São Paulo tem mais ou menos um terço de artistas brasileiros, um terço de latino-americanos e um terço internacional, só para resumir uma longa história.

Sempre foi assim?
Meio que sempre foi assim. O latino-americano entrou e saiu do foco. Teve um momento de maior sensibilização com a América Latina, depois isso ficou meio fora. E voltou nos últimos anos. Mas meu campo é arte latino-americana. Talvez eu tenha sido chamado por fazer uma reflexão nessa trajetória. Aí tive uma postura talvez um pouco política: entre um artista americano, famoso, que sinto a mesma afinidade que posso sentir com um artista paraguaio, eu vou escolher o paraguaio, porque a Bienal pode ter um efeito transformador na carreira desse artista. O impacto que a Bienal tem no Brasil e na América Latina é maior do que tem no resto do mundo. É uma pena perder essa articulação regional, porque acho que é uma das coisas que fazem diferença aqui. Foi uma história trabalhada e achei um pouco egoísta escolher só porque eu gosto. Acho que afinidade também vem com responsabilidade. No caso do Anibal e do Feliciano, são dois artistas incríveis, eu acompanho há muito tempo, a Bienal vai fazer uma grande diferença, pois vai expor um trabalho que está perdido, não está visível. Vou citar um artista de quem nem gosto, só para dar um exemplo: o Damien Hirst. Claro que poderia ter escolhido, mas Damien Hirst precisa da Bienal de São Paulo? Não! Ele está em outra operação.

Mas a Bienal é para os artistas ou para o público?
Para os dois. Uma coisa que me interessa especificamente na Bienal de São Paulo é que o público central são os artistas. Porque nem Veneza, nem a Documenta, nem a maioria das Bienais acontece em cidades que são polos de arte contemporânea. A Bienal de São Paulo, sim. Então, esse público de artistas é fundamental num país que não tem uma estrutura formal de educação para os artistas, que não tem escolas MFA (mestrado em Belas Artes), não tem essa estrutura que tem, por exemplo, nos EUA, onde o artista se profissionaliza numa escola. Aqui, não. Vejo que a Bienal cumpre um pouco essa função. Todos os artistas brasileiros visitam a Bienal.

A caixa preparada pelo setor educativo da Bienal de São Paulo com exercícios para se ver qualquer exposição, refletir e compartilhar a experiência (Foto: Fundação Bienal de São Paulo)

Fale, por favor, sobre o programa educativo.
Educativo é uma prioridade para mim. A Bienal tem uma trajetória longa com o educativo, que começa na segunda edição. Nessas últimas edições tem um investimento importantíssimo com o material, a formação dos professores, os mediadores. Há um autêntico interesse da instituição com uma missão educativa e, certamente, deve haver interesse dos patrocinadores também. Só que vi que o material que era produzido limitava-se muito à edição da Bienal. É um material muito bom, muito completo, mas é para atender a uma exposição que dura três meses. Esse material depois fica um pouco perdido. Eu queria propor para a equipe daqui fazer um material que fosse mais universal, que pudesse ser aplicado em qualquer exposição. Então, a ideia foi criar uma série de exercícios. A pessoa tem uma certa dificuldade de ficar 5, 10 ou 15 minutos na frente de uma obra. Até para a gente é difícil. A caixa que fizemos são umas pistas para te ajudar a estruturar esse tempo. A gente testou isso, esse processo de olhar, refletir e compartilhar. Estou bem contente com esse material. Ele não fala sobre os artistas que estão aqui. Ele fala de um procedimento, de uma forma de se relacionar com arte.

Como são os projetos dos artistas-curadores?
É um modelo experimental. Eu não fiquei controlando esse processo, mas estou absolutamente encantado com todos os projetos. Cada um foi num caminho bem diferente dos outros. Acho até, falando dos estudos curatoriais, que é uma boa escola. Tem desde o artista que chamou um grupo de artistas e falou “vamos fazer juntos!” até uma exposição museográfica específica, fazendo vínculos muito exatos entre os trabalhos.

Então, também vai ser um catálogo de atitudes curatoriais?
Eu não sabia que isso ia acontecer, mas, de fato, ficaria feliz se acontecesse. Se as pessoas percebem que existem pelo menos sete formas diferentes de pensar curadoria, eu já me sinto mais do que feliz. Espero que isso seja perceptível.

Você tem a ambição de que essa forma de trabalhar se reproduza com o tempo?
Não. A estrutura da Bienal é a cada dois anos chamar uma pessoa, que tem de trabalhar com suas limitações e habilidades. Tem de realizar uma proposta que faça sentido para as pessoas. Acho que o próximo curador que entrar deve fazer o que ele ou ela quiser fazer – seja uma mostra supertemática, seja uma exposição só de vídeos, seja uma individual nos três andares… O bom da Bienal é que tem essa possibilidade de experimentação. A Bienal tem uma tradição de mudança. Ela tem de defender esse lugar: a liberdade de se propor uma renovação a cada edição.

Notei que em sua lista pessoal houve certo equilíbrio entre artistas homens e mulheres. Você teve essa preocupação?
Tanto na seleção dos artistas curadores quanto na minha seleção pessoal eu procuro esse equilíbrio. É uma sensibilidade que me imponho. Dos sete artistas-curadores, tem dois brasileiros, dois latino-americanos e três internacionais. O gênero está equilibrado. 

Serviço
33ª Bienal de São Paulo
Até 9/12/2018
Pavilhão da Bienal
Parque Ibirapuera – São Paulo
bienal.org.br