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Obras da Revolução Periférica na exposição [Foto: André Seito / Itaú Cultural]
Postado em 08/03/2023 - 5:40
Um século de agora para construir um novo futuro
Obra do coletivo Revolução Periférica, em mostra no Itaú Cultural, é um convite à reflexão sobre outros imaginários de Brasil, para além de um eixo branco, patriarcal e sudestino

Em 2022, uma série de exposições – institucionais e comerciais – debruçou-se em promover uma reflexão sobre o centenário da Semana de Arte Moderna, realizada na cidade de São Paulo entre os dias 13 e 18 de fevereiro de 1922. Antes de avançar nas reflexões propostas por tais mostras, é preciso compreender o contexto em que a manifestação artístico-cultural estava inserida. Em 1922, o Brasil completava 100 anos de sua Independência e 34 anos da abolição da escravidão. O mundo vivia o pós-Primeira Guerra Mundial.

Nessa conjuntura, interessava aos intelectuais que organizaram o evento pensar como o Brasil havia saído desses processos históricos, a partir de uma perspectiva de incorporação de tais questões sociais dentro de um viés de arte, apoiando-se em um pensamento nacionalista que buscava construir uma identidade artística genuinamente brasileira, em oposição à procura pela perfeição promovida pelas academias de Belas Artes. Se, por um lado, a Semana de Arte torna-se um marco cultural pela sua ruptura com as normas estéticas acadêmicas, o que, inclusive, desagradou aos intelectuais conservadores de São Paulo, por outro, é preciso pensar que tais discussões não ultrapassaram os limites geográficos da própria cidade.

E foi esse caminho que as diversas exposições que se criaram para pensar os 100 anos da realização do evento trilharam. Em 2022, foi preciso olhar para todo o seu contexto e pensar que, embora seja importante reconhecer o pensamento implicado na construção da Semana de Arte, existiam ali questões abissais em relação à própria noção de uma construção de identidade nacional. Mas não somente. A começar pelo famoso retrato dos participantes da Semana de 1922, formado apenas por homens brancos, é preciso ater-se a qual história estaria sendo contada naquele momento e como ela implicava uma história de ausências, não apenas geográficas, mas identitárias. A priori, a Semana de Arte Moderna de 1922 precisa ser compreendida como uma semana branca, masculina e paulistana.

Posto esse panorama introdutório, volto para analisar a exposição Um Século de Agora, inaugurada em novembro de 2022 no Itaú Cultural, que foi uma das últimas do ano a trazer o contexto da Semana de Arte para uma discussão institucional. Mas, o que poderia parecer um atraso de calendário – já que a grande maioria das exposições se concentrou no primeiro semestre do ano, uma vez que o centenário foi celebrado em fevereiro –, este fato em nada impactou a força que a exposição tem. Muito pelo contrário, já que a mostra se propõe a “expandir os horizontes e trazer novas narrativas para este século”, como escrito no texto de divulgação da instituição. Parece interessante começar o ano de 2023 com tal exposição em cartaz, como um lugar de lembrar que todas as discussões propostas ao longo de 2022 não foram meros revisionismos históricos, mas um caminho que precisa ser incorporado como definitivo dentro da história da arte brasileira.

Obra da Revolução Periférica na exposição
[...] embora seja importante reconhecer o pensamento implicado na construção da Semana de Arte, existiam ali questões abissais em relação à própria noção de uma construção de identidade nacional.
Almoço de Garis (1994), de Dalva de Barros [Foto: André Seito / Itaú Cultural]

PERIFERIA SEGUE VIVA
Com curadoria compartilhada entre Júlia Rebouças, Luciara Ribeiro e Naine Terena, Um Século de Agora reúne 25 artistas e coletivos para apresentar um panorama atual do que vem sendo realizado enquanto arte e cultura no território nacional, incorporando diferentes vivências e experiências sociais, culturais, políticas e geográficas em sua proposta discursiva. Logo acima, falei sobre a Semana de Arte ser compreendida como uma semana paulistana, mas é preciso incorporar outro aspecto sobre ela, de ter sido um evento criado por uma elite intelectual. Por isso me interessa pensar a escolha da obra do coletivo Revolução Periférica como o trabalho que recebe o público na instituição. A inversão de lógica já começa como um convite à reflexão do que esperar dos três andares que abrigam a mostra. Na bandeira, a frase “Periferia segue viva” evoca os atos de resistência de tudo aquilo que não orbitava enquanto centro de uma história tida como oficial, sendo esse centro não necessariamente algo geográfico, mas também subjetivo.

Se a obra composta pelo coletivo nos coloca em outra perspectiva de como enxergar não somente a exposição, mas também as perspectivas de futuro do cenário artístico como um todo, a instalação da artista pernambucana Amanda Melo da Mota, que recepciona o público no primeiro andar, também funciona como uma passagem simbólica, oferecendo um lugar de cura tanto para corpos quanto para a própria natureza, outra instância que tem sido pensada em um contexto decolonial.

DESEJO DE CONSTRUÇÃO
Cura também é um conceito presente nas fotografias da artista, poeta e filósofa Abigail Campos Leal, que recria um imaginário para divindades ancestrais em um cenário pós-fim do mundo. Em um contexto de apagamentos sobre corpos dissidentes, a artista aponta que, apesar de toda tentativa de invisibilização histórica, tais vozes hão de ressuscitar para sempre, e sempre. Esses pilares são extremamente importantes para compreendermos as várias narrativas propostas pelas curadoras. No entanto, a mostra centra-se em apresentar trabalhos criados, em sua grande maioria, em 2022. Ou seja, buscando compreender o agora enquanto desejo de construção de um novo século que dê conta de abarcar novos imaginários de Brasil.

Essa noção de mudar a perspectiva de eixos percorre os três andares da mostra, como na instalação de Sara Lana, localizada no segundo subsolo, que joga luz sobre a oralidade como forma de preservação das histórias de um Brasil profundo, não somente valorizando esses conhecimentos em relação aos grandes centros urbanos, mas, novamente, invertendo um sentido de como esses espaços precisam se abrir a e valorizar cada vez mais saberes ancestrais, discurso presente também na obra do Coletivo Mato Grosso, que reflete sobre o modelo de ocupação e desenvolvimento de monoculturas para a produção de commodities, e como resgatar práticas tradicionais como forma de sobrevivência.

Assim, a exposição mostra como precisamos repensar o país para além de um eixo branco, patriarcal e sudestino, pois, se queremos construir uma identidade genuinamente brasileira, é preciso que o Brasil esteja disposto a conhecer o próprio Brasil. Mas não somente. É preciso saber se há o desejo de abraçar essa pluralidade e conviver com novos protagonismos.

SERVIÇO
Um Século de Agora
Até 2/4/23
Itaú Cultural, Av. Paulista, 149