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Vista da exposição Gran Fury na galeria vitrine do Masp, com a obra Beijar Não Mata: Ganância e Indiferença Matam em destaque (Foto: Eduardo Ortega / Cortesia Masp)
Postado em 21/05/2024 - 5:45
DOMANDO A GRANDE FÚRIA
A primeira mostra latino-americana dedicada ao coletivo estadunidense Gran Fury, no Masp, é um monumento ao seu ativismo

Composta de mais de 70 obras realizadas por Avram Finkelstein, Donald Moffett, John Lindell, Loring McAlpin, Mark Simpson, Marlene McCarty, Michael Nesline, Richard Elovich, Robert Vazquez-Pacheco e Tom Kalin, que, juntos, assinavam como o coletivo Gran Fury (Nova York, 1988-1995), a exposição Gran Fury: Arte Não É o Bastante, em cartaz até 9/6 na galeria vitrine do Masp, localizada no seu primeiro subsolo, tem curadoria de André Mesquita e David Ribeiro, e inaugura o calendário anual da instituição que, em 2024, se dedica às Histórias da Diversidade LGBTQIA+.

Há quase uma década, quando iniciou seu programa de revisão historiográfica da arte, o museu afirmou a urgência de revisitar e revisar seu papel social e simbólico na formulação de discursos que buscam ressoar as demandas do contexto no qual está inserido, para não restar, como muitos de seus objetos, no passado. O presente, sabemos, é um agora prenhe de ontens, muitas vezes traumáticos. A epidemia da Aids é um desses acontecimentos-ferida na esfera político-social das décadas de 1980 e 1990. São inúmeras as representações de seus efeitos nos corpos individuais e coletivos que, desde então, passaram a permear nossa cultura e, consequentemente, a povoar nosso imaginário. Em especial, de muitos daqueles que compõem a comunidade LGBTQIA+.

Em suas mais diversas formas, esses produtos culturais – filmes, livros, imagens, espetáculos e performances – auxiliaram tanto na estigmatização quanto no desenvolvimento de empatia, na proposição de soluções e na disseminação de conhecimentos sobre a pluralidade de vidas possíveis com o vírus do HIV. Muitos desses artefatos são verdadeiros documentos-monumentos dos ápices de seu alastramento, tal como a narrativa autoficcional de Hervé Guibert, Ao Amigo Que Não Me Salvou a Vida, lançado em 1990. Guibert também nos legou o filme O Pudor ou Impudor (La Pudeur ou l’Impudeur), lançado postumamente, em 1992. O documentário reúne os registros em vídeo feitos pelo próprio escritor e fotógrafo sobre sua vida com HIV-Aids.

No Brasil, outro artista também realizou uma espécie de diário sobre sua vida como portador de HIV. As gravações de áudio de Leonilson, inclusive, também serviram de base para documentários, como Com o Oceano Inteiro para Nadar (1997), de Karen Harley, e A Paixão de JL (2015), de Carlos Nader, auxiliando na compreensão do modo como a Aids se impregnou no trabalho visual do artista. Leonilson, vale lembrar, também terá mostra dedicada à sua trajetória no Masp durante suas Histórias da Diversidade LGBTQIA+.

Guibert e Leonilson, assim como Félix González-Torres e Keith Haring, são apenas alguns nomes de uma constelação de talentos perdidos precocemente, devido às necropolíticas da Aids e cujos trabalhos não só são monumentos que não deixam esquecer esse trauma, como também documentos de seu impacto subjetivo. Seja por omissão deliberada, culpabilização das vítimas ou dissimulação dos dados, muitos países fizeram pouco caso do vírus justamente pela sua conexão midiática com certa parcela subalternizada da população. No credo da época, os principais atingidos pelo vírus do HIV eram sintetizados na sigla 5H, em referência ao grupo de risco formado por: Haitianos, Hemofílicos, viciados em Heroína, Homossexuais e Homens prostitutos (Hookers, em inglês).

SOBRE A INSUFICIÊNCIA DA ARTE
A sombra da morte que recaía sobre os portadores do vírus naquele momento de crise nos leva a pensar na pertinência da afirmação Arte Não É o Bastante. O justo subtítulo da mostra foi retirado de um dos cartazes inaugurais do coletivo. Ele se faz potente pela lembrança necessária, ainda mais no grande templo da arte, de que os objetos ali presentes são insuficientes. São suficientes em si, é claro, pela sua capacidade de continuamente engendrar imagens e discursos, mas também parciais pelas suas circunstancialidades, seus contextos específicos e suas circunscrições a sistemas e instituições que atuam na sustentação do saber-poder.

Arte não é o bastante, pois o estar vivo transcende a esfera simbólica. A vida vivida em sua potência excede qualquer representação. O próprio cartaz que dá nome à mostra ressalta a importância da ação social direta. Um recado que pode facilmente ser transliterado para o nosso tempo. Como questiona Mesquita, no início de seu texto no catálogo: “O que pode a arte diante de uma pandemia?” O curador refere-se à Covid-19, no contexto dos desmandos do governo brasileiro, que evocam o comportamento dos políticos estadunidenses no período. A comparação, inclusive, é mais pertinente no cenário interamericano do que no nacional, tendo em vista que o governo brasileiro conseguiu realizar articulações muito mais eficientes do que as dos EUA a partir de meados da década de 1980.

Além do intuito de apresentar ao público brasileiro a produção do coletivo nova-iorquino que atuou entre o fim da década de 1980 e início dos anos 1990, outro objetivo da exposição, segundo Mesquita em texto que compõe o catálogo da mostra, é o de “discutir os limites e os alcances das campanhas gráficas” do Gran Fury, assim como debater a “arte como lugar estratégico de contribuição ao ativismo do HIV/Aids”. Contudo, em ambos os casos, a mostra parece falhar.

Men Use Condoms or Beat It (1988) [Foto: Eduardo Ortega / Cortesia MASP]

ESTRATÉGIAS ESTÉTICAS DO GRAN FURY COMO FETICHE
O Gran Fury surge dentro do Act Up (Aids Coalition to Unleash Power) [Coalizão da Aids para Libertar o Poder], movimento da sociedade civil que visava implicar criticamente o Estado na criação de políticas públicas para o controle e combate ao HIV. A importância e o legado do Act Up, de fato, transcendem fronteiras nacionais, tendo se espalhado por diversos países, diferentemente de organizações como o Grupo de Apoio à Prevenção à Aids (Gapa), primeira entidade não governamental da América Latina, criada em 1985 em São Paulo, que também fez – e faz – uso de recursos de comunicação visual para propagar suas bandeiras.

Desde sua formação, o Act Up utilizou estratégias estéticas para capturar a atenção do grande público. Além de cartazes, a entidade promoveu passeatas e ações que poderiam facilmente ser lidas à luz de teorias da performance. O Gran Fury, que, em parte, tem seu surgimento tributário à necessidade de criação de peças de comunicação visual assertivas para o Act Up, não fazia apenas imagens. O ato de espalhar cartazes na cidade, quase sempre em espaços não autorizados, afinal, também poderia ser compreendido no escopo do happening.

As dimensões por vezes monumentais de cartazes como Kissing Doesn’t Kill (1989), uma das primeiras imagens que o visitante encontra, antes mesmo de adentrar a exposição, evidencia muito mais a dimensão icônica do gesto do Grand Fury do que aquela de acontecimento político. Muitos trabalhos do coletivo existiram em diferentes dimensões, em variados materiais e sobre inúmeras superfícies do espaço urbano, mas são poucos, e pequenos – na hierarquia visual da expografia – os documentos que auxiliam, justamente, na compreensão do alcance das ações do grupo.

Ainda que o Masp tente reinstaurar a vocação dos cartazes, dispondo adesivos e panfletos que podem ser levados pelo público e – quem sabe? – inseridos no cenário urbano, é difícil crer na sua efetiva concretização. Adesivos de Men Use Condoms or Beat It (1988), assim como as notas falsas de dólar de Wall Street Money (1988), que eram lançadas em ações que visavam denunciar a força do interesse privado na tomada de decisões sobre questões públicas e que repousam em uma pilha no chão da primeira sala da mostra, tornam-se lembranças de uma visita à exposição. Meros fetiches, como os próprios cartazes nas paredes do museu.

Se, por um lado, a opção por exibir cartazes de um coletivo que denunciou as más políticas públicas no controle do HIV-Aids faz ressoar a memória, ainda recente, da pandemia de Covid-19 – momento no qual teria adquirido outro sentido –, não nos deixando esquecer da possibilidade de outros vírus que ainda virão, por outro lado, ela parece recorrer a um tema que, sem deixar de ser importante, justamente por sua continuidade, estigmatizou o recorte identitário que ela visa privilegiar em seu calendário. Ainda precisamos falar muito de HIV-Aids, mas passadas quatro décadas, já podemos cotejar seus primeiros documentos com outros, assim como depurar seu legado. Contudo, não é isso que encontramos nessa exposição. Se não há familiaridade com a profundidade e a extensão do tema, é mais fácil sair de lá paralisado pelo peso da história do que motivado pela diversidade de formas de agenciamento individual e coletivo diante da tragédia do real.

Detalhe da obra Wall Street Money (1988), notas falsas de dólar com mensagens contundentes que eram lançadas em manifestações de rua (Foto: Eduardo Ortega / Cortesia Masp)

AUSÊNCIA DO PLURAL
Estranha, também, a ausência, em um museu que justamente privilegia Histórias, do plural. Obviamente, o museu pode e deve ser um espaço de fricção entre culturas e de apresentação da alteridade. Mas essa escolha não precisa levar à abdicação da necessária valorização daquilo que diz respeito ao nosso próprio contexto e que, talvez, para muitos brasileiros que hoje visitam o museu, seguem sem importância. Se o Masp, no deslocamento que opera do mundo para seu interior, pode transformar documentos em monumentos, não seria mais louvável comemorar nossos próprios heróis?

A solução expográfica, nesse sentido, focada nos aspectos gráficos dos cartazes, apresentados em excelentes ampliações, acaba por valorizar mais a imagem do que sua medialidade, sua capacidade de pôr indivíduos em relação. Mesquita afirma que a obra gráfica do grupo “nos provoca a pensar sobre a necessidade e a urgência de artistas, ativistas e agentes culturais se articularem como força política solidária em direção à ação direta, caminhando junto a movimentos contestatórios”, mas o que nos resta é pensar no descompasso dos museus, não só o Masp, nesse caminhar junto, assim como nos leva a refletir sobre o quão distante da ação direta nossas instituições culturais ainda se encontram.

Gran Fury: Arte Não É o Bastante
23/2 a 9/6/2024
Masp
Av. Paulista, 1.578 – SP