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Fernanda Torres em A Casa dos Budas Ditosos [Foto: Luciana Prezia / Divulgação]
Postado em 10/06/2024 - 3:42
Quando o racismo se revelou atravessando A Casa
Psicanalista propõe convite à reflexão e à ação a partir da peça baseada em livro de João Ubaldo Ribeiro

Semana passada, fomos até a Barra da Tijuca para assistir A Casa dos Budas Ditosos, com Fernanda Torres, no teatro Multiplan. Lugar impressionante, para quem não está acostumado com esse tipo de ambiente. No hall, entramos numa fila interminável e sinuosa. Ali, cada um teve a oportunidade de testemunhar, mirando-se no outro, a plenitude da branquitude em alguns recantos do Rio de Janeiro. Só gente bem vestida, muita leveza. Pouco barulho. Gente branca, quase exclusivamente.

Logo Fernanda Torres, sentada, preenche o espaço de sua presença vibrante: depois de uma breve introdução, começa a narração em primeira pessoa das aventuras sexuais libertinas de uma mulher, ao longo da sua vida. O texto original, de João Ubaldo Ribeiro, foi adaptado para o teatro por Domingos Oliveira.

No cenário originário, uma menina de 12 anos. Aparecem então os personagens masculinos ao alcance imediato da menina. São apresentados na ocasião os “escravos” do bisavô, mera quantia de objetos indiscerníveis, “pelo menos duas dúzias”, na boca dos quais a protagonista se lembra com volúpia que o avô enfiava ovos quentes, para testar uma cura da gagueira. Tema estereotipado da comédia dos corpos. Com uma particularidade: faz do corpo supliciado de homens negros massificados, sem individualidade, um objeto de ridículo e de satisfação da pulsão oral primária dessa família de donos de fazenda. A gente já se olhou, constrangidos, nessa hora. Esperamos para ver. Esperamos que de alguma maneira fosse introduzido um distanciamento para com uma época histórica em que se podia falar coisa parecida sem constrangimento.

Em breve, entendemos que se tratava apenas de um tipo de introdução ao surgimento do verdadeiro objeto do desejo. Preparava-se o terreno da primeira vez. A eclosão e a realização de um desejo sexual primordial irrepressível. A menina escolhe entre todos aquele que ela chama primeiro de “negrinho”. Este jovem, Domingos, só ganhará nome depois de ter satisfeito o desejo dela. Numa primeira aproximação, a menina se faz insistente para obter o que ela almeja. Ela marca com o jovem um encontro que ele não pode recusar: “Você vai, ou eu conto a meu avô que você tomou ousadia comigo e ele manda lhe capar, como mandou capar Finado Roque, seu tio, você sabe que meu avô mandou capar ele, porque ele se ousou com uma rapariga dele”. Pouco depois começa o estupro do menino. A palavra é pronunciada e corresponde à realidade descrita nessa hora: uma relação sexual forçada, sob ameaça brutal.

Começando pelo óbvio. Fernanda Torres é uma grande atriz, sim. É uma figura incontestável da esquerda brasileira. Já se posicionou várias vezes contra o racismo. Interpretou a personagem do Ubaldo com um prazer imenso associado à liberdade que ela incarna. Encontrou nesse caminho o que tem de mais raivoso no conservadorismo brasileiro. O campo da oposição ideológica onde a Fernanda Torres e João Ubaldo estavam atuando era então estruturado pelas questões de moralização e de libertação. Neste sentido, A Casa dos Budas foi um corajoso grito de liberdade.

A possibilidade de identificação à personagem, tão palpável, realmente impressionante quando atravessa o corpo de uma atriz da estatura de Fernanda Torres, se deve em parte à unidade interna do texto. Ubaldo tem o talento de fazer aparecer na sua frente os personagens, em alguns traços evocadores. A Casa dos Budas está marcada por um tom de leveza, de espiritualidade, de distância de qualquer tipo de moralização. Este tom, com suas palavras e suas sonoridades peculiares participam da coerência do sentido.

A narradora é uma personagem fictícia, não podemos tomá-la por um sujeito real e criticá-la como se fosse. Mas não se trata aqui de uma crítica nem à personagem, nem a quem a interpreta. O racismo, nos seus efeitos mais destrutores e mais duradouros, não é essencialmente uma questão individual. É antes de mais nada estrutural. Enquanto tal, ele é uma ferramenta de opressão social. De acordo com Silvio de Almeida, “o racismo fornece o sentido, a lógica e a tecnologia para a reprodução das formas de desigualdade e violência que moldam a vida social contemporânea” (O Racismo Estrutural, Feminismos plurais p.15). O cerne do problema tem a ver com a estrutura de um discurso e com os seus efeitos passados e presentes na sociedade. De modo exemplar, o texto de João Ubaldo contém características racistas que em nenhum momento foram destacadas como tais no monólogo. Misturam-se estruturalmente num só fluxo de sentido e de estilo que permitiu à plateia rir tanto do “neguinho” apavorado com seus “lábios pálidos” quanto do avô brincalhão e das suas facécias.

Lacan explica como todo efeito de sentido é retroativo. Para produzir sentido, qualquer fala precisa passar pelo que ele chama de grande Outro, grande reservatório de significantes, lugar do código. É a partir desse lugar que a palavra, uma vez pronunciada, passa a ser compreensível e comunicável, no que Lacan denomina lugar da mensagem. Do ponto de vista sócio-histórico, o grande Outro está em parte estruturado pelo estado das determinações sociais e das relações de poder, no âmbito de uma sociedade específica. Ele é o lugar da formação do Ideal do Eu, a partir do qual cada sujeito se submete a uma série de significantes do Outro. Levando esse conceito ao âmbito das relações sociais, está na base do que se pode observar no dia a dia em nosso discurso, tanto como senso comum quanto como preconceito.

Capa de A Casa dos Budas Ditosos na edição de 2019 da editora Alfaguara. O livro de João Ubaldo Ribeiro foi adaptado para o teatro pela primeira vez em 2004. [Foto: Editora Alfaguara / Divulgação]

LINHA DO DESEJO INCONSCIENTE

Na Casa dos Budas, o único destino proposto a Domingos consiste em satisfazer os desejos sexuais da protagonista. Não por acaso acontece sob ameaça de castração. Lembra-nos que o racismo tem a ver com o repúdio do gozo do Outro, do seu modo particular de gozar. Por isso tende a aniquilá-lo. O racismo cria uma trajetória predeterminada em que o personagem negro só pode existir se submetendo aos imperativos do gozo do Outro. Se estabelece assim o que Célio Garcia apresenta como nomeação predicativa: se refere à constituição de um destino mortífero para os sujeitos negros possibilitado pela existência de alguns nomes que têm a função de significantes destinais.

Considerando a realidade linguística, a fala racista é reconhecível pelo seu caráter repetitivo e pouco criativo: alguns poucos significados (na Casa dos Budas: “preguiçoso”, “potente sexualmente”, “covarde”, “sem individualidade”) ficam amarrados a significantes relacionados com a raça (“negro”, “negrinho”). No lugar da mensagem, concretizada nesse dia pelo espaço físico do teatro Multiplan, ainda fica socialmente autorizado rir da ameaça de castração feita a um jovem negro apavorado. O prazer sentido nessa hora pelos espectadores gargalhando provavelmente se situa na segunda linha do discurso, que Lacan identifica no seu Seminário 5 como linha do desejo inconsciente. De alguma forma algum gozo teria sido proporcionado através de palavras como “pálidos” ou “capar”, com seu poder de evocação do medo e a criação de um sentimento de poder sobre a mutilação sexual de um ser à sua mercê.

O texto da Casa retrata uma época. Os códigos sociais e literários, assim como o nível geral do letramento racial, eram muito diferentes. O texto introduz um distanciamento irônico por meio da “sacanagem” consagrada pela protagonista. Mas não pode apagar em nós essa certeza: piadas racistas não têm mais cabimento em qualquer contexto que seja. Sobretudo, não se pode mais falar sem pensar na dor que pode ser reativada num sujeito cuja história e o dia-a-dia ainda estão profundamente marcados pela violência devida a sua cor. Trata-se de uma necessidade para quem não aceita mais participar de um racismo que se reafirma a cada vez que se aceita estar atravessado por um discurso mortífero. Pensar que basta afirmar – em palavras e ações – que não somos racistas para fazer o racismo desaparecer em nós equivale a achar, como aquela paciente evocada por Freud, que não tem nada a ver com “a desordem da qual se queixa”.

É nesse sentido que, nos Condenados da Terra, Fanon entende o processo de descolonização como intimamente imbricado a uma subversão da linguagem: “A descolonização nunca passa despercebida, pois atinge o ser, modifica fundamentalmente o ser, transforma espectadores esmagados pela inessencialidade em atores privilegiados, recolhidos de modo quase grandioso pelos raios luminosos da História. Ela introduz no ser um ritmo próprio, trazido pelos novos homens, uma nova linguagem, uma nova humanidade” (Zahar, 2022, p.32). Não por acaso Fanon usa uma metáfora teatral, fazendo do espectador um ator, para evocar a possibilidade do não-ser colonizado se reerguer e virar um ser libertado. Ele sabe da importância do desenvolvimento de uma cultura descolonizada local num processo de transformação social e subjetiva.

Que seja desse modo entregue o convite à reflexão e à ação, a todos que de alguma forma participaram desse espetáculo, começando pela gente, respeitosa plateia.

Renaud Tilly é psicanalista e professor de Letras.

O RACISMO CRIA UMA TRAJETÓRIA PREDETERMINADA EM QUE O PERSONAGEM NEGRO SÓ PODE EXISTIR SE SUBMETENDO AOS IMPERATIVOS DO GOZO DO OUTRO