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Ilustração de Nina Lins a partir do desenho da capa de Computer Love, de Ian Uviedo, inspirada na capa do álbum Computer World (1981), da banda alemã Kraftwerk [Foto: ceLesTe]
Postado em 01/07/2024 - 6:54
04 – GRITAR

1.
A minha primeira contribuição para este veículo foi um ensaio chamado Ética-Revolução: O Espelho Real-Visceralista, que buscava investigar de que forma o grupo contracultural mexicano dos infrarrealistas, formado nos anos 1970 a partir dos encontros de Roberto Bolaño e Mario Santiago Papasquiaro, havia sido retratado no romance Os Detetives Selvagens, uma das obras-primas de Bolaño, publicado em 1998.

Mais do que a forma com que manipula elementos históricos para criar um universo ficcional particular, no entanto, o que sempre me interessou em Bolaño é a sua maneira de extrair o terror – não, o horror verdadeiro – de cenas em que, aparentemente, não há nada acontecendo. A meu ver, esse traço está presente em toda a sua obra, do romance inaugural A Pista de Gelo – “O ar era tão denso que ao se levantar o braço eu tinha a sensação de penetrar algo vivo, quase sólido; o próprio braço parecia aprisionado por centenas de pulseiras de couro, úmidas e carregadas de eletricidade.”[1] – à reunião de textos O Gaucho Insofrível, último livro que deixou para ser publicado, sem contar os textos apócrifos. Em toda sua extensa produção como romancista, contista e poeta, são localizáveis esses pontos de exceção em que o clima parece chegar a um ponto tal de pressão que não nos resta outra imagem que não a do beco sem saída. Mas como ele chega nesse lugar?

Acho que é uma resposta a esta pergunta, algum direcionamento possível, que estou buscando na exposição de Francis Bacon. O horror que se perpetua no vazio. Foi o próprio autor chileno quem me indicou o caminho em um livro que, mesmo o possuindo há anos, continha um poema que eu nunca havia lido:

“F.B – He Dead
Francis Bacon
Aprendeu a viver
Sozinho
Aprendeu a suportar
A lentidão
Dos entardeceres humanos
Seu fedor insuportável
Aprendeu a arte da paciência
Similar em tantas coisas
À arte da indiferença
Francis Bacon aprendeu
A conviver com as horas
A conviver com as sombras
Máscaras
Da mesma liberdade
Ilegível”[2]

Francis Bacon: A Beleza da Carne está no primeiro andar do Masp e, antes mesmo de adentrar o espaço da exposição, pinço no texto curatorial algumas frases que poderiam ser sobre Bolaño: “Ainda que sua obra não possa ser considerada estritamente autobiográfica, ela é carregada de traços de suas experiências pessoais, seus desejos e seus relacionamentos”; “Certas dualidades emergem de maneira potente em sua obra: a beleza e o horror, a vida e a morte, a sedução e a destruição […]”; “Sua obra também foi marcada por certa ambiguidade entre a excitação e a violência” – embora, no caso dessa última, eu não diria “certa ambiguidade”, e sim que sua obra é toda firmada na tensão entre erotismo e brutalidade. Basta pensar nas descrições das vítimas de feminicídios na fictícia e hiper-realista cidade de Santa Teresa, na fronteira do México com os Estados Unidos, onde toma lugar o centro nervoso do romance 2666.

Bacon nasceu na Irlanda e obteve grande parte de sua formação artística entre Londres e Paris, mas não consigo deixar de pensar que a areia usada junto à tinta óleo no primeiro quadro da exposição – Figure Crouching – é a mesma areia do deserto de Sonora.

Vista da exposição Francis Bacon: a Beleza da Carne [Foto: Eduardo Ortega/ © The Estate of Francis Bacon. All rights reserved. AUTVIS, Brasil /DACS/Artimage, London 2024]

2.
Durante o período que viveu em Londres, em meados dos anos 1930, Bacon trabalhou de maneira esporádica como designer de interiores, em seus projetos fazendo alusão ao modernismo alemão da Bauhaus e às artes decorativas francesas dos anos 1920. A experiência acabou por lhe proporcionar a percepção espacial que apareceria de maneira recorrente em seu trabalho no uso de formas geométricas, ainda que linhas esfumadas delimitem o espaço onde as figuras se movimentam. Ao longo das 23 pinturas da exposição, o recurso contribui para endossar a atmosfera claustrofóbica de cada uma, como se estivéssemos diante de entes já exaustos após procurarem, sem sucesso, por todas as saídas possíveis. Quando falamos de Bacon, é difícil não usarmos termos como “visceral”, “carnal” e “irracional” para expressar a sensação de retorno à humanidade mais primitiva que suas pinturas causam, e é curioso pensar que a geometria entra nessa equação como um elemento diametralmente oposto, quero dizer, como um signo da ordenação humana sobre os aspectos visíveis da natureza. As formas geométricas disparam e se alojam em seu extremo, que é o da mente em estado de colapso. Racional, então, se torna sinônimo de esquizofrênico, de paranoico, de doentia lucidez adquirida ao se olhar o mundo sem véu, ou, quem sabe, o que está oculto detrás das cortinas de veludo em quadros como Man at Washbasin.

Man at a Washbasin (c.1954), Francis Bacon [Foto: Prudence Cuming Associates Ltd/ Coleção Privada/ © The Estate of Francis Bacon. All rights reserved. AUTVIS, Brasil / DACS/Artimage, London 2024]
Tal equação faz sua aparição na segunda parte de 2666, “A Parte de Amalfitano”, quando o professor chileno, ao encontrar entre seus livros um exemplar de Testamento Geométrico, do escritor galego Rafael Dieste, sem ter a menor ideia de como foi parar ali, decide mimetizar o único readymade feito por Marcel Duchamp em Buenos Aires e pendura o livro no varal, deixando-o vulnerável à intempérie, ou, como descreveu o artista, “para que o vento pudesse folhear o livro, escolher os problemas, virar as páginas e arrancá-las.” O Readymade Malheureux, na verdade, fora um presente de casamento de Duchamp para sua irmã e as instruções consistiam em pendurar um tratado de geometria na janela e prendê-lo com um barbante. Em uma das famosas entrevistas que o francês concedeu a Pierre Cabanne, ele disse que tinha se divertido desafiando a seriedade de um livro “carregado de princípios” como aquele, ao expô-lo às inclemências do tempo. Me parece sintomático que, logo depois de pendurar o livro no varal e sentir-se “muito mais aliviado”, inicie o processo de enlouquecimento de Amalfitano, concentrado na voz que começa a ouvir e que, se assomando ao Testamento de Dieste no varal, se torna a testemunha de seu declínio.

Ou seja, tanto na citação à obra de Duchamp feita por Bolaño em seu romance mais apocalíptico quanto nas linhas que aprisionam as figuras de Bacon em um pesadelo protagonizado por sua própria impotência, temos a noção de um mundo em que as formas – e com isso quero dizer os valores, os conceitos, os dogmas – estão perpetuamente se apagando à força de algo incontrolável, cuja energia ultrapassa em muito nossa constituição física e compreensão. À medida que o vento “com cheiro de fumaça” varre as páginas do tratado lá fora, dentro de casa o professor vai perdendo a razão. E à medida que as formas geométricas se tornam mais herméticas, mais agitadas ficam as figuras do pintor irlandês. E se debatem. E começam a gritar.

Vista da exposição Francis Bacon: a Beleza da Carne [Foto: Eduardo Ortega/ © The Estate of Francis Bacon. All rights reserved. AUTVIS, Brasil /DACS/Artimage, London 2024]

3.
“Eu perdi todos os meus dentes para os meus amantes”, declarou Bacon certa vez em uma entrevista, referindo-se sobretudo a Peter Lacy, que costumava espancá-lo com um cinto e foi um de seus principais modelos – é o caso em Seated Figure on a Couch e em outras obras expostas no Masp – ao lado de sujeitos mais amigáveis, feito Lucien Freud, retratado como uma figura magnética e soturna em Portrait of Lucien Freud. O texto na exposição me diz que o primeiro esboço desse quadro foi feito a partir de uma fotografia de Kafka, que teve sua frágil fisionomia mesclada à do pintor inglês, e cristalizada dessa forma.

Bacon detestava trabalhar com modelos vivos, preferia mil vezes o estático das fotografias. Talvez o movimento inerente à vida o distraísse daquilo que tentava capturar. Provavelmente foi por essa razão que recusou as encomendas de Allen Ginsberg para que realizasse retratos do poeta fazendo sexo com seu companheiro, Peter Orlovsky. Inicialmente, Bacon disse que duvidava que Ginsberg conseguisse manter a ereção – “to keep it up” – pelo tempo necessário, mas depois confessou que não gostava de pintar homens barbudos e cabeludos, pois a cabeleira o impedia de ver as linhas do crânio demarcadas sob a pele. Mestre na arte do equívoco, foi Ginsberg quem apresentou Bacon a William S. Burroughs, convencido de que havia uma correspondência espiritual entre os trabalhos de ambos. Escritor e pintor se conheceram em Tânger, no Marrocos, quando Burroughs fugia da lei depois de alegadamente ter assassinado sua esposa e Bacon dividia seu tempo entre pintar e cuspir os dentes para fora da boca. Não restou muito da interação entre os dois, além de um documentário frio dirigido por Howard Brookner para o programa Arena, da BBC, e da famosa fotografia de John Minihan. Foi Burroughs quem disse que eles estavam em “lados opostos do espectro”.

Essa órbita da residual cena queer da beat generation em torno de sua figura serve para mostrar de que maneira Bacon era compreendido no contexto de liberação sexual na Europa pós-Guerra, eleito para reinar em um arco que vai do cinema marginal de Derek Jarman às mais celebradas produções cinematográficas de Pier Paolo Pasolini. De fato, em seu filme de 1968, Teorema, a cena que precede em poucos instantes aquela “onde começa a nova iniciação de um rapaz burguês” e mostra a “miséria degradante do próprio corpo nu e potência reveladora do corpo nu do companheiro”[3], é uma cena em que Pedro e o “convidado” estão folheando um livro de gravuras de Bacon.

Still de Teorema (1968), de Pier Paolo Pasolini, onde Pedro e O Visitante folheiam livro de gravuras de Bacon

É verdade que toda essa movimentação passa um pouco ao largo de Roberto Bolaño. Mas também é verdade que os infrarrealistas deviam muito aos beats, assim como deviam – declaradamente – ao surrealismo, ao horazerismo peruano e a outros ismos que encontravam pela frente, e que Bolaño era aficionado por todas as variantes surgidas da ficção científica, muitas delas tendo na figura de Burroughs seu precursor. Lembro que alguém um dia definiu 2666 como uma “não ficção científica”. A homossexualidade aparece na obra do chileno em algumas passagens de Os Detetives Selvagens – pensemos no apetite sexual de Pele Divina, personagem marcante do romance, ou na digressão de Juan Garcia Madero sobre as correntes literárias homossexuais, bissexuais e heterossexuais – e de Amuleto, um dos únicos livros narrados por uma voz feminina, a inigualável voz de Auxilio Lacouture, que muitas vezes define os personagens como “machinhos latino-americanos”, um comentário sobre de que forma ideias arcaicas de masculinidade são imputadas na cabeça de sujeitos reprimidos.

Em todo caso, acredito que Bacon não se importava com nada disso. Tinha preocupações maiores. O ano é 1963. Poucas horas antes da abertura de sua primeira mostra individual na Tate Gallery, em Londres, o pintor recebe um telegrama com a notícia de que Lacy faleceu em Tânger, onde morava. Complicações do alcoolismo. Alguns anos depois, em 1971, a cena se repete com pequenas variações: na véspera da abertura de uma retrospectiva no Grand Palais, em Paris, seu companheiro da época, George Dyer, comete suicídio misturando álcool e remédios no quarto em que estão hospedados no Hotel des Saints-Pères.

“Viemos ao mundo com um grito e muitas vezes também morremos com um grito; talvez o grito seja o símbolo mais direto da condição humana” – é uma frase de Bacon que leio na parede da exposição no Masp. E toda a sala parece reagir à vibração desses gritos uníssonos e silenciosos, carregados de sofrimento. Gritos que começam no quadro O Massacre dos Inocentes, pintado por Nicolas Poussin no século 17 e pelo qual Bacon era fascinado, e ressoam nas páginas de 2666, quando, enfim, entendemos que o assassino não se resume a uma pessoa. Que o assassino, afinal, somos todos nós e que já não restam mais inocentes.

Massacre dos Inocentes (entre 1625-29), de Nicolas Poussin [Foto: Google Art Project]

4.
Se tem algo que une várias das pinturas da mostra Francis Bacon: A Beleza da Carne é a noção de “estudo”. Muitas trazem títulos como Study for Figure II, Study for the Nurse in the Film “Battleship Potemkin” e Study for Self Portrait. E uma vez que essa noção está tão próxima à de “ensaio”, é assim que começo a entender esse texto: um estudo sobre as aproximações possíveis entre Roberto Bolaño e Francis Bacon.

Study for Self-Portrait (1981), Francis Bacon [Foto: Prudence Cuming Associates Ltd/ Von der Heydt-Museum, Wuppertal/ © The Estate of Francis Bacon. All rights reserved. AUTVIS, Brasil / DACS/Artimage, London 2024]
Guiado por um poema esparso, vou à exposição com o intuito de encontrar essa relação, e é claro que a encontro. A encontro na ressonância de Man in Blue – de uma série de retratos que, leio na parede, representam “homens de passagem pela cidade, envolvidos em casos extraconjugais ou em relações sexuais anônimas” –, com os muitos quartos de hotéis e motéis que inundam as páginas dos road books de Bolaño, que foi, ele mesmo, vigia noturno em um camping; a encontro quando Bacon diz que detestava fazer auto-retratos, tinha aversão ao próprio rosto, mas que não lhe restava outra opção, pois à sua volta as pessoas estavam “morrendo como moscas” e como isso se relaciona com a criação de Arturo Belano, pseudônimo de Bolaño, seu auto-retrato duvidoso e borrado; a encontro na crueza e na deformação da realidade tal como vista por eles.

Man in Blue I (1954), Francis Bacon. [Foto: Prudence Cuming Associates Ltd/ Museum Boijmans Van Beuningen, Rotterdam/ © The Estate of Francis Bacon. All rights reserved. AUTVIS, Brasil / DACS/Artimage, London 2024]
E, por fim, inesperadamente, a encontro numa coincidência geográfica. Francis Bacon faleceu no dia 28 de abril de 1992, em Madri, vítima de pulmões exaustos. Um ano depois, em 1993, a uns 700 quilômetros de distância, na cidadezinha de Blanes, província de Girona, após escrever alguns livros que só seriam publicados quando chegasse a sua vez de morrer, ali mesmo, Roberto Bolaño lançava A Pista de Gelo. A Espanha, portanto, testemunhou a morte desses dois homens que, em comum, além da paixão pela leitura – os livros de Lacan, Nietzsche, Bataille, Proust, Eliot, Conrad e Ésquilo figuravam na biblioteca pessoal de ambos –, tinham a marca daqueles que observavam a dimensão sombria da experiência humana e devolviam a essas visões seus gritos selvagens – plenos de vida, de ilegível liberdade.

“Nunca procurei o horror”, diz Bacon em uma entrevista, “o que eu poderia fazer para competir com todo o horror que vemos diariamente?”

Estou quase terminando. Esta vértebra está quase no fim. Há só mais uma pergunta que preciso responder.

5.
Como ele chega nesse lugar?

Estou diante da tela Jet of Water, a única de toda a exposição que não traz nenhuma figura humana e que, no entanto, é das que mais prendem minha atenção. Já vi todos os quadros e este, reservado à última sala da galeria, me mostra apenas um jato dessa estranha água branca, lançada no interior de um quarto.

Jet of Water (1988), Francis Bacon [Foto: Prudence Cuming Associates Ltd/ Coleção Privada/ © The Estate of Francis Bacon. All rights reserved. AUTVIS, Brasil / DACS/Artimage, London 2024]
Em seu ensaio Francis Bacon: Lógica da Sensação, Gilles Deleuze supõe que nas paisagens inabitadas de Bacon – “espaços não intuitivos e irreconhecíveis” – figuras humanas deixam seus rastros, como uma reminiscência de sua presença. Imediatamente, me lembro do axioma de Hemingway citado tantas vezes por Ricardo Piglia. Referindo-se a um de seus primeiros contos, o escritor norte-americano diz: “Numa história muito simples chamada Out of Season, omiti o verdadeiro final em que o velho se enforcava. E o omiti com base na minha teoria de que é possível omitir qualquer coisa quando se sabe o que omitir e que a parte omitida reforçará a história e fará com que o leitor sinta algo além daquilo que entendeu”.[5]

A última frase de Bacon que leio na exposição é esta: “Eu não deformo corpos pelo prazer de deformá-los, mas para transmitir a realidade da imagem em sua fase mais aguda”.

A realidade da imagem em sua fase mais aguda. É exatamente assim que eu descreveria os momentos de exceção narrados por Bolaño. Entendo, começo a entender, que a sensação que causam também provém da omissão. No caso de Bolaño, o que é omitido não são necessariamente as figuras humanas – é a própria humanidade.
E essa ausência, é claro, grita.

***

[1] Roberto Bolaño, A Pista de Gelo. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

[2] Roberto Bolaño, A Universidade Desconhecida. Trad. Josely Vianna Baptista. São Paulo: Companhia das Letras, 2021

[3] Pier Paolo Pasolini, Teorema. Trad. Fernando Travassos. São Paulo: Brasiliense, 1984

[4] Ricardo Piglia, Anos de Formação. Trad. Sérgio Molina. São Paulo: Todavia, 2017