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Detalhe do trabalho Sem título, para Jimmie D, da série Frente de trabalho (2018), de Ícaro Lira (Fotos: Divulgação)
Postado em 24/05/2018 - 3:52
Frente de Trabalho
Leia texto sobre a exposição individual que Ícaro Lira realizou na Galeria Jaqueline Martins, em São Paulo
Gabriel Bogossian

“Frente de trabalho” foi o nome dado, em diferentes contextos e épocas, a políticas públicas que abordam o problema da força de trabalho ociosa. Instrumento frequentemente utilizado para combater o desemprego e os efeitos da seca, a organização de frentes de trabalho prevê a mobilização de trabalhadores para atuar de maneira temporária a serviço do Estado ao mesmo tempo em que, em alguns casos, participam de programas de qualificação profissional.

Sem seca ou Estado, a mobilização que se vê em Frente de trabalho, de Ícaro Lira, é de outra ordem. Anunciado desde a entrada como local de produção, o espaço expositivo é ocupado com obras de diferentes artistas e outras, próprias ou frutos de colaborações, realizadas a partir dos documentos e objetos acumulados pelo exercício coletor que é base das operações poéticas de Lira. Como nos textos canteiros de obras de Francis Ponge, onde a matéria poética é constituída pelas diversas tentativas de elaborá-la, se busca aqui, lançando mão de diferentes recursos, produzir uma reflexão em torno do trabalho e do trabalhar – esse gesto tão cotidiano quanto universal –, sem deixar de lado questões relativas ao trabalho na arte e ao sistema que o sustenta e explora.

Dois desses recursos se destacam pela regularidade com que servem à composição do conjunto. O primeiro, a apropriação de conteúdos históricos como matéria da obra, impõe um gesto seletivo e reinterpretativo sobre um magma de documentos, objetos e publicações, como se fosse preciso organizar não só o pessimismo diante da história, mas os escombros aos pés do anjo. A aproximação entre materiais de diferentes períodos produz uma contra-história do trabalho, onde trabalhadores de épocas e ofícios distintos são postos em perspectiva e é possível notar analogias, recorrências e repetições, não só entre momentos diversos do passado, mas entre eles e nosso presente.

Postos lado a lado, os registros produzidos pelo modernismo paulistano, a produção de artistas contemporâneos e itens de memorabilia da ditadura civil-militar de 64, constroem um panorama a partir do qual contemplamos eventos que permanecem geralmente à sombra da memória e da história. Como nas frentes de trabalho referidas no título, é possível ouvir um amplo coro de vozes reunidas. A obra, aqui, é uma espécie de relatório de uma pesquisa em processo; ao se pensar como lugar de emergência do passado, funciona como porta para os conteúdos que, do lodo dos nossos recalques históricos, retornam.

E se o recurso à história pretende elaborar um lugar para o trabalho de arte diante de um pacto social violento e traumático, como o brasileiro, que marca também nossas narrativas culturais, este processo não se dá exclusivamente no isolamento do estúdio ou dos arquivos em que se pesquisa, mas em diálogo com outras produções. Em Frente de trabalho ganha relevo o trabalho coletivo, que, para além da panorâmica histórica e das citações nominais – Juraci Dorea, Traplev e José Bezerra, entre outros –, é visível nos fragmentos da história do trabalhismo, nos documentos provenientes de diferentes arquivos e coleções e nos processos de composição e aperfeiçoamento dos objetos concebidos pelo design vernacular. A soma de braços e esforços presente na pesca, na construção, no preparo da goma de tapioca ou do couro, na pedreira, nos carregadores de piano, nos operários da fábrica, na ocupação do antigo hotel Cambridge e no trabalho de arte serve ao mesmo tempo como objeto de investigação e método poético. Como em um mutirão, é a valorização da dimensão coletiva e dialógica do trabalho que dá sentido à obra e à perspectiva que ela instaura.

Por último, cabe mencionar a presença de uma certa herança cinematográfica, evidente não só na citação aos irmãos Lumière ou no filme Frente, mas também na maneira de estruturar as composições e articulá-las em uma sequência de significado. Considerados em conjunto, os elementos constituintes de Frente de trabalho parecem organizados pelo olhar de um diretor-artista, cuja subjetiva decupa em planos a posição dos objetos no espaço, se aproximando em zoom de alguns ou dispondo outros em profundidade, como elementos de um longo plano sequência. Como se reinventasse o processo de edição de um filme, desmembrando e espacializando sua matéria prima, Lira modula diferentes pontos de vista e épocas e produz uma mescla singular entre poesia e história. Do seu interior, corpos reduzidos a ‘carne de trabalho’ e autores às margens do cânone falam novamente, emergindo do anonimato para afirmar uma vez mais sua singularidade e sua história.