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Performance em O Barco (2021), de Grada Kilomba, em exibição na Galeria Galpão em Inhotim [Foto: Icaro Moreno / cortesia Instituto Inhotim]
Postado em 16/04/2024 - 5:03
O Barco e as repetições históricas
Exposição de Grada Kilomba no Inhotim aborda o passado colonial e o que prossegue dele no presente em genocídios e violências

“A arte é um objeto vivo; não se pode instalar e dar as costas a ela”, afirma Grada Kilomba. O Barco (2021), instalação que a artista portuguesa baseada em Berlim acaba de inaugurar no Instituto Inhotim, em Brumadinho (MG), definitivamente não é uma obra de arte a que se possa dar as costas. Depois de percorrer os 32 metros de comprimento desse barco minimalista, feito de blocos de madeira queimados e dispostos diretamente sobre o chão desenhando esquematicamente o fundo de um navio que transportava as pessoas sequestradas para serem escravizadas nas Américas, tudo o que se pode fazer é percorrer os 32 metros novamente. E de novo, até conseguir acreditar. 

Esses mínimos múltiplos comuns, os 134 blocos de madeira que compõem a obra, foram projetados, segundo a artista, com o objetivo de materializar o espaço máximo que um corpo poderia ocupar deitado no fundo da nau, com não mais que 20 centímetros para elevar a cabeça do chão. Os navios eram verdadeiras tumbas, lápides, eram caixões que reduziam a “mercadoria” do regime escravocrata ao grau de ocupação logística de qualquer outro produto sendo transportado. Caminhar exaustivamente pela instalação, ocupando mentalmente o minúsculo espaço destinado a um corpo, pensando no que poderia ser essa travessia atlântica em tais condições, confere ao corpo do visitante uma oportunidade de reflexão e de lembrança e, por que não?, de sentir raiva. Muita raiva que faz não poucos rebentarem em prantos ali mesmo. 

Mas quando Grada Kilomba fala da sua arte como objeto vivo, ela se refere, mais especificamente, às ativações da obra O Barco (2021) por uma performance realizada, nos dias de abertura da mostra, por um ensemble de cantores de gospel e ópera, bailarinos clássicos e percussionistas, baseados em periferias de Lisboa, todos descendentes da diáspora africana. Ao longo da exposição de longa duração, grupos formados por artistas locais de Brumadinho e região, coordenados pela autora da obra, darão seguimento às ativações. A performance consiste num coro que lamenta a sorte de um casal aprisionado no navio, que canta e respira em compasso, ao som dos instrumentos de percussão que dão densidade ao lamento dolorido, uma metáfora para o luto da história da escravidão.

O Barco (2021), de Grada Kilomba, em exibição na Galeria Galpão em Inhotim [Foto: Icaro Moreno / cortesia Instituto Inhotim]
Performance em O Barco (2021), de Grada Kilomba, em exibição na Galeria Galpão em Inhotim [Foto: Icaro Moreno / cortesia Instituto Inhotim]

A pesquisa de materiais foi um processo muito importante para a constituição da obra, segundo Kilomba: “A madeira de reflorestamento ou reutilizada que é escolhida como a matéria para contar a história, quando submetida à queima revela as particularidades de cada peça, porque o fogo forma ali na superfície uma pele, que assim como a pele humana é indicadora de singularidades”. Em 18 dos blocos de madeira está inscrito o poema em 18 versos que a artista fez com versões para yorubá, criollo de Cabo Verde e árabe da Síria, entre outros, que é também recitado, em português, na performance. “Quando escrevi o poema, sabia que deveria ser traduzido em muitas línguas, dos migrantes, refugiados, os mesmos corpos que continuam atravessando oceanos e terminando no fundo dos mares. Os mesmos corpos”, sintetiza a artista.

Barco é um objeto e um símbolo que habita corpos, mentes, grupos, territórios, mas aqui trata-se, sobretudo, de contrapor ao imaginário do barco como glória, aventura, descoberta a imagem e a imaginação dos tumbeiros que definem a formação do Brasil. “A ideia é adentrar o inconsciente coletivo e perguntar, ou lembrar, quem vinha trazido no fundo desses barcos? Quais corpos são carne, quais corpos são invisíveis? Tornar existências novamente as inexistências da história silenciada é o propósito desta obra.” Como portuguesa, Kilomba é especialmente crítica da empresa colonial necropolítica de Portugal, país que iniciou o tráfico de pessoas e que foi o último a abolir a escravidão. “Temos uma responsabilidade imensa porque nós fomos os primeiros e nós fomos os últimos. Tudo o que foi construído lá, todas as riquezas de lá são resultado do que retiraram das colônias e do trabalho escravo. Os navios chegavam cheios de corpos negros e voltavam cheios também de produtos e riquezas, como a própria madeira”, afirma Grada Kilomba.

A força maior da obra O Barco é não ser sobre o passado apenas, mas sobre o que prossegue no presente em genocídios e violências, é sobre as repetições históricas. A exposição individual de Grada Kilomba, a mostra solo de Paulo Nazareth e a coletiva Ensaios sobre Paisagem marcam o início do programa 2024 de Inhotim. “Um novo momento, um novo ciclo do Inhotim, fundamental para o futuro da instituição”, afirma Paula Azevedo, diretora-executiva do instituto, na coletiva de imprensa. A principal marca do novo ciclo é a retomada da vocação de Inhotim de trabalhar com os artistas lidando diretamente com os espaços expositivos. 

Detalhe da instalação O Barco (2021), de Grada Kilomba, em exibição na Galeria Galpão em Inhotim [Foto: Icaro Moreno / cortesia Instituto Inhotim]
A artista Grada Kilomba momentos antes do início da coletiva de imprensa sobre inauguração da mostra O Barco no Inhotim [Foto: Juliana Monachesi/ revista celeste]
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