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Jaider Esbell e Daiara Tukano
Postado em 03/11/2021 - 9:27
O privilégio de ouvir
Impossível escrever o obituário do artista brasileiro mais vivo nesse momento. Nossa homenagem a Jaider Esbell
Da redação

Um mundaréu de gente, passamos a noite de ontem, 2/11, em claro. Estávamos numa vigília, reunidos de forma remota em torno do fato incontornável de que Jaider Esbell se encantou. Sem termos dormido, tampouco sonhamos, por isso hoje cedo começamos o dia sem as respostas que poderiam ter vindo em sonho. Daiara Tukano nos pediu, com o coração na mão, que orássemos em silêncio. Aqui, na redação da seLecT, ouvimos o cantar dos pássaros ao longo do dia. Cantaram o dia inteiro. Será que já cantavam assim antes? Vivíamos anestesiados sem ouvir esses cantos, sem prestar atenção em tudo que é vida ao redor, precisamos sofrer esse golpe tão violento para acordar? “Todos os dias, quando estou dormindo em minha casa de vidro, uma sabiá vem me acordar. Ela pode só estar ali a acontecer, mas tomo para mim aquela louvação. Ela chega, ou surge, lá pelas quatro e pouco da manhã. É no tempo dela onde jogo o meu e busco levar o seu. Fica pousada no telhado da vizinha virada para onde o sol se põe, parece que depõe. De fato, ela compõe. É de onde a olho sentado também e passo e digerir meu sonho transmutando em oração.” Ao desadormecer, Jaider Esbell tinha o hábito de transmutar os sonhos em oração. Amanhã cedo teremos essa oportunidade, caso o sono hoje chegue, pela exaustão. Mas estar vivo hoje já é para nós uma grande oportunidade, sobretudo para refletir sobre esse fato incontornável e suas implicações.

Desde ontem à tarde, quando chegou a notícia, até hoje de manhã, quando paramos de monitorar o Instagram, o feed da revista se transformou numa mostra orquestrada coletivamente, mas que era uma exposição solo: fotos e mais fotos de obras de Esbell, retratos dele, vídeos, homenagens que não vão ter fim. Primeiro porque os povos indígenas honram seus ancestrais cotidianamente. A arte indígena contemporânea é sobre isso. As homenagens e os memoriais ao imenso Jaider Esbell agora fazem parte de nossas vidas. Acostumemo-nos. Segundo porque o artista que se encantou deixa um legado tão imenso quanto ele, e sua obra, que já transformou o mundo, agora vai começar a transmutá-lo. Esbell colocou em curso uma revolução chamada AIC, a Arte Indígena Contemporânea. Não fez isso sozinho, assim como seus trabalhos não devem ser vistos como obra de um indivíduo. Artistas indígenas vivem nos explicando que a “arte”, que sequer tem esse nome entre eles, não é de um, e sim de todos. As obras de Daiara expostas na Bienal de São Paulo são dela do ponto de vista não indígena de “autoria”, mas são do povo Tukano do ponto de vista dela e de seus parentes. A arte de Esbell é dele e é de todos: e “todos” na perspectiva multiespécies, que inclui o monte Roraima, o jenipapo e a sabiá, porque de nossa perspectiva não indígena, antropocênica… enfim, deu para entender, né? Diziamos que Esbell e muitos com ele iniciaram essa revolução. “AIC é essa armadilha maravilhosa que a gente arma para falar do bem comum; que é algo mais comum do que se pensa”, afirmou recentemente na exposição Moquém_Surarî, no MAM São Paulo. “Aqui, os guerreiros são os artistas. Estamos em guerra”, declarou ainda.

Guerra. Revolução. Luta. Arte Indígena. Nós, de ontem para hoje, buscando respostas para a morte prematura de um artista e guerreiro Macuxi, quanta prepotência a nossa. Nós, produzindo textos “definitivos”, leituras assertivas sobre o ocorrido de ontem! Quanta vaidade a nossa. Hoje temos a oportunidade de aprender com Jaider uma lição valiosa, o Jaider-artista, assim como o Jaider-sabiá, o Jaider-jenipapo, o Jaider-Macuxi: honrar os nossos ancestrais, os humanos e os não-humanos. É sobre isso a AIC. Essa a guerra que os artistas indígenas contemporâneos estão travando pelo bem comum, pelo bem das florestas, o bem do planeta. Isso é o comum, a comunidade, a comunhão que nos colocou em vigília madrugada adentro. Cada dia, de agora em diante, pode ser uma oportunidade de aprender. Na mesma Moquém_Surarî, às vésperas da inauguração da 34ª Bienal, da qual a mostra faz parte (assim como outras exposições em outras instituições parceiras da edição atual de “nossa Bienal”, aquela que dávamos por certa a cada dois anos e que, em meio ao choque que foi atravessar o ano de 2020, nos demos conta de que não era certa; a Bienal que está tão garantida a cada dois anos como a sustentabilidade da espécie humana a cada minuto e contando, e sobre isso também fala a AIC), Jaider Esbell afirmou, em resposta a uma indagação sobre como vinha se dando a interlocução entre artistas indígenas e seus pares, artistas não indígenas, entre os participantes todos da exposição Faz Escuro, Mas Eu Canto, enfim: “Quando eu me propus a sair da minha aldeia e ir viver uma outra cultura, à qual não pertenço, eu fiquei calado durante dez anos. Ouvia e observava, aprendia sobre essa cultura, estudava. Depois de dez anos em silêncio, comecei a falar”. Esbell explicou, na ocasião, que não podia considerar um diálogo, ou interlocução, o gesto de uma pessoa que vinha lhe dar um tapinha nas costas e dizer que seu trabalho era lindo. Tampouco podia considerar que acontecia um diálogo quando queriam ouvir dele algo sobre as obras expostas e logo o interrompiam tentando completar seu raciocínio. “Não existe interlocução.”

As obras de Jaider Esbell, seu livro de artista Carta ao Velho Mundo (2018-2019) em versão fac-similar inteiro aberto cobrindo um painel enorme, e A Guerra dos Kanaimés (2020), série criada especialmente para a Bienal, estão expostas até 5 de dezembro no Pavilhão da Bienal no Parque Ibiraquera; sua instalação Entidades (2021) é visível 24 horas por dia no lago em frente ao parque; a curadoria assinada por ele, Moquém_Surarî, segue em cartaz até 28/11 no Museu de Arte Moderna de São Paulo. Temos a oportunidade valiosíssima de ir ver e rever esses trabalhos, de ler todas as páginas do livro, uma contra-narrativa à visão eurocêntrica-colonial da história da arte. O site da Galeria Jaider Esbell, fundada em 2013, tem vasto material escrito pelo artista. Que tal pararmos de procurar respostas e também de fazer tantas perguntas e começar a ouvir, observar e aprender? Quanta arrogância a nossa e que vergonha imaginar quantas vezes interrompemos o raciocínio do artista-guerreiro, adiando, assim, a possibilidade de conhecer uma cultura a que não pertencemos. Vamos aprender a ver um mundo que não conhecemos, uma epistemologia que nos é inacessível, intraduzível. Vamos começar um diálogo, vamos sonhar uma interlocução que, os encantados nos ajudem, venha a ser possível o quanto antes. Temos pressa. Estamos em guerra. Oremos em silêncio.

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